Editora responsável: Profa. Dra. Fayga Bedê
Declaramos que o artigo intitulado “A racionalidade na interpretação e aplicação do Direito: do desafio kelseniano ao desafio dos bons argumentos”, submetido à
Andreas J. Krell desenvolveu de forma mais específica a prevalência da vontade na interpretação do Direito e a obrigatória justificação das decisões judiciais; a discussão dos conceitos da “moldura normativa” e da “única resposta correta”, além da justificação racional da decisão jurídica com “bons argumentos”; a função da dogmática jurídica que deve participar do processo de interpretação/aplicação do Direito. Para tratar desses temas, levantou a bibliografia germânica referenciada.
Vitor Mendonça Maia desenvolveu de forma mais específica a descrição do “desafio kelseniano” e de sua importância no âmbito da interpretação jurídica; a discussão sobre a separação rígida entre Direito e Moral e a possibilidade de um discurso de justificação sobre juízos de valor na ciência do Direito; o relativismo de conteúdo do Direito posto e a incomensurabilidade valorativa; a fixação num modelo único de ciência e a afirmação do Direito como ciência prática.
Buscamos demonstrar a necessidade de superação do “desafio kelseniano” referente à pretensa impossibilidade de racionalidade na interpretação e aplicação do Direito. Procuramos questionar o modelo kelseniano de ciência para a área jurídica e investigar se há uma objetividade no uso de “bons argumentos” capaz de impor um maior padrão de racionalidade aos operadores jurídicos brasileiro no momento da tomada de decisão.
Partimos de uma pesquisa jurídica mais tradicional (embora não dogmática), baseada em uma resenha bibliográfica crítica de doutrina nacional e estrangeira. Compreendemos a ciência jurídica como uma
Concluímos que a ideia de Kelsen sobre a interpretação do Direito é resultado do seu conceito positivista de ciência, baseado na comprovação empírica das ciências exatas. A sua distinção rígida entre juízos de fato e juízes de valor (inacessíveis para o conhecimento científico) e afirmação da prevalência da vontade sobre a racionalidade no ato de interpretar/aplicar uma lei entram em conflito com o dever constitucional de fundamentação racional das decisões judiciais.
Levantamos argumentos contra uma visão relativista da interpretação do Direito, que contribui para a imprevisibilidade das decisões judiciais. Esclarecemos diferentes aspectos da teoria de Kelsen que versam sobre a interpretação e aplicação da lei que são pouco discutidas na academia do Direito brasileiro.
We seek to demonstrate the need to overcome the "Kelsenian challenge" regarding the alleged impossibility of rationality in the interpretation and application of law. We pretend to question the Kelsenian model of science for the legal area and investigate whether there is an objectivity in the use of "good arguments" capable of imposing a greater standard of rationality on Brazilian legal operators at the time of decision making.
We start from a more traditional (although not dogmatic) legal research, based on a critical bibliographic review of national and foreign doctrine. We understand legal science as a science of action that must offer viable theoretical paths for decision-making and concrete problem solving.
We conclude that Kelsen's idea of the interpretation of law is the result of his positivist concept of science, based on empirical proof of the exact sciences. His rigid distinction between judgments of facts and of values (inaccessible to scientific knowledge) and his affirmation of the prevalence of will over rationality in the act of interpreting/applying the law conflicts with the constitutional obligation of rational reasoning of judicial decisions.
We raise arguments against a relativistic view of the interpretation of law, which contributes to the unpredictability of judicial decisions. We clarify different aspects of Kelsen's theory that deal with the interpretation and application of the law that are little discussed in the Brazilian academy of law.
Buscamos demostrar la necesidad de superar el "desafío kelseniano" con respecto a la supuesta imposibilidad de racionalidad en la interpretación y aplicación del derecho. Tratamos de cuestionar el modelo de ciencia kelseniana para el área jurídica e investigar si existe una objetividad en el uso de "buenos argumentos" capaces de imponer un mayor nivel de racionalidad a los operadores legales brasileños en el momento de la toma de decisiones.
Comenzamos a partir de una investigación legal más tradicional (aunque no dogmática), basada en una revisión bibliográfica crítica de la doctrina nacional y extranjera. Entendemos la ciencia jurídica como una ciencia de acción que debe ofrecer caminos teóricos viables para la toma de decisiones y la resolución concreta de problemas.
Concluimos que la idea de Kelsen de la interpretación del derecho es el resultado de su concepto positivista de la ciencia, basado en la prueba empírica de las ciencias exactas. Su rígida distinción entre las sentencias de hecho y los jueces de valor (inaccesibles para el conocimiento científico) y la afirmación de la prevalencia de la voluntad sobre la racionalidad en el acto de interpretar/aplicar una ley entra en conflicto con el deber constitucional de razonamiento racional de las decisiones judiciales.
Planteamos argumentos contra una visión relativista de la interpretación del derecho, que contribuye a la imprevisibilidad de las decisiones judiciales. Aclaramos diferentes aspectos de la teoría de Kelsen que se ocupan de la interpretación y aplicación de la ley que se discuten poco en la academia brasileña de derecho.
Os conceitos fundamentais da
A interpretação/aplicação1 do Direito é um dos temas mais controversos nas discussões e pesquisas jurídicas atuais, preocupadas com a sua praticabilidade, previsibilidade, produção de decisões justas na base de critérios objetivos ou os limites materiais do controle judicial de atos públicos. Talvez o maior desafio contemporâneo resida no enfrentamento construtivo da imprevisibilidade das decisões dos órgãos públicos.
Foi chamada de “desafio kelseniano” a concepção do autor austríaco sobre a interpretação e aplicação do Direito, tendo em vista as objeções presentes em sua obra à possibilidade de um conhecimento racional substancial sobre esse ato. Superar o “desafio kelseniano” passa a ser condição de um conhecimento racional sobre a concretização do Direito, tendo em vista as quatro objeções feitas por Kelsen: a) a ausência de verdade nos juízos de valor; b) a interpretação autêntica dominada pela vontade; c) a impossibilidade de descrição das possibilidades do enunciado jurídico além da sua moldura; e d) o relativismo de conteúdo do Direito.
Kelsen adota um conceito bastante limitado de ciência para aplicá-lo na área do Direito, o que leva a muitas dificuldades práticas. Aqueles que até hoje defendem, pelo menos em parte, o modelo de “ciência jurídica” proposto por ele entre os anos 30 e 60 do século passado, não conseguem oferecer respostas às questões mais prementes da atualidade no âmbito da interpretação e aplicação do Direito.
Discutir os limites de um conhecimento racional da interpretação/aplicação do Direito não se confunde com a afirmação de que esse processo seja exclusivamente baseado em questões cognitivas. A possibilidade da construção desse conhecimento capaz de transpor a Teoria do Direito ao campo prático precisa ser confirmada também perante algumas considerações metaéticas, visto que esse ramo da Filosofia passou a discutir, nas últimas décadas, justamente a questão das valorações, que guarda íntima relação com a interpretação do Direito.
O Brasil estabeleceu o dever jurídico expresso de fundamentação das decisões do Poder Judiciário e da Administração Pública, o que revela a preocupação com a racionalidade da aplicação do Direito como forma de seu controle. Por isso, as objeções levantadas por Kelsen serão confrontadas para verificar a possibilidade de superar o “desafio kelseniano” e, em caso positivo, se a questão está definitivamente solucionada.
O estudo doutrinário sobre o tema contempla, ao lado dos doutrinadores nacionais mais expressivos, as publicações de autores estrangeiros, especialmente alemães, a fim de demonstrar que a discussão sobre os constrangimentos e as potencialidades da teoria positivista de matiz kelseniano já avançou bastante em outros países.
Percebemos que o “desafio” precisa ser enfrentado por qualquer um que pretenda afirmar a racionalidade da procura pelos fundamentos da interpretação jurídica; tratá-la em nível teórico pressupõe a superação das conclusões de Kelsen sobre o assunto. Ele negou que possa existir conhecimento científico sobre a interpretação, já que juízos de valor não seriam enquadráveis no esquema verdade/falsidade; ao mesmo tempo, julgou impossível a descrição objetiva de uma interpretação correta do Direito, já que essa seria caracterizada por atos de vontade dos órgãos de aplicação das normas jurídicas (
Nesse modelo, a função da doutrina jurídica de orientar a prática é bastante reduzida, visto que produziria apenas uma interpretação “não-autêntica”, sem aplicação concreta. Estabelecer decisões justas ou corretas, na visão de Kelsen, é papel da política do Direito. Assim, mesmo que se esteja diante de uma lacuna ou de um caso difícil, a doutrina, para ser científica, deve restringir-se a apontar as possibilidades de sentido e nada mais (
Parece que essa “parte viva” se refere à explicação estrutural do Direito que, em termos racional-sistemáticos, influenciou inúmeros estudos desde então. A interpretação, contudo, é reduzida pelo autor à política do Direito e a um subjetivismo (“ato de vontade”), cuja distância do racionalismo científico é tão grande que acaba por retirar a interpretação/aplicação do Direito do campo da ciência. O seu pretendido critério científico-racional apto a orientar a produção de uma teoria pura do Direito mostra-se insuficiente diante dos casos concretos, justamente onde o Direito é realizado com mais intensidade na vida das pessoas. A interpretação científica kelseniana resumese às possibilidades de decisão para os casos concretos, sem indicação de qual é efetivamente a melhor em cada situação, no famoso esquema da “moldura”. Assim, do ponto de vista prático, sua teoria produz “resultados escassos” (
Na verdade, Kelsen pretendeu edificar cientificamente o conhecimento jurídico, sem utilização de valores “extrassistêmicos”, não internalizados normativamente, delineando as possibilidades de uma ciência na área do Direito e tentando afastar os elementos metafísicos. Para o positivismo2 reinante de sua época, a ciência rejeitava tudo o que considerava irracional, ideológico ou não reproduzível por experimento ou demonstração lógico-matemática, apesar das diferenças entre o positivismo jurídico e o clássico (
A pureza epistemológica exigida por Kelsen, despreocupada com os fins práticos, tem ainda outro preço: o sacrifício total da moral e da justiça, as quais seriam “ideais metafísicos”, impassíveis de considerações científicas. A exatidão e a objetividade do conhecimento atingido pela metodologia kelseniana referem-se apenas ao aspecto da estrutura do Direito, que possui reduzida importância para a resolução dos problemas jurídicos mais difíceis. A obra de Kelsen é importante para entender a estrutura do Direito, mas nada responde à pergunta de como ele deve ser, como ele mesmo afirma. Como no relativismo e no positivismo, o justo e o correto não têm vez nela (
O referido relativismo decorre da admissão de que o Direito é fruto de decisões variáveis no tempo e no espaço, cuja validade encontra sua base em processos formais, de maneira que a contingência começa a ser elemento constante do Direito. A legitimação deste, enquanto sistema, não encontra lastro na razão prática da ação justa, senão no fato de ter havido uma escolha subjetiva em determinado momento e lugar, a fim de se tornar uma ação válida. Por isso, no Direito positivo, as normas passam a ser válidas devido ao tempo e ao espaço em que são postas, de forma indiferente ao justo (
No entanto, a relatividade de conteúdo do Direito posto gera dificuldades para a sua legitimação por não levar em consideração o justo. Kelsen legitima, no plano teórico, a validade do Direito contingente, enquanto forma posta, mas não consegue legitimar substancialmente o Direito enquanto “concretização de sentido da razão jurídica” no seu aspecto prático, o que poderia impedir construções teóricas do lado negativo da contingência jurídica, como as leis postas pelos governos nazista e fascista (
Nessa linha, a justiça é uma “ideia irracional” diante da impossibilidade de estabelecer previamente, de forma científica, qual o critério de determinação do justo, e a subjetividade inerente às análises de interesses contrapostos. Com isso, Kelsen defende que as disputas entre valores sejam travadas nos parlamentos, em que cada um dos indivíduos pode – pelo menos teoricamente – conquistar a vontade dos demais através de debates. Nesse contexto, a criação do Direito pelo legislador não é ligada a ideais racionais universais; o que interessa, para ele, é o aspecto procedimental-formal da criação. Fica de fora de sua teorização uma busca efetiva por soluções substanciais acerca de tensões envolvendo valores igualmente importantes em um Estado Democrático de Direito, a exemplo das escolhas das maiorias em prejuízo dos direitos de minorias (
Não se desconhece, contudo, que Kelsen, seguindo sua metodologia à risca, entende como teoria da interpretação a indicação das possibilidades interpretativas, ilustrada pela metáfora da moldura. No entanto, com a sua epistemologia jurídica pura, ele deixa de fora da ciência a possível racionalidade da aplicação do Direito, fazendo que exista sempre uma margem de discricionariedade ou até arbitrariedade na aplicação de normas jurídicas, o que é uma das maiores preocupações da interpretação dos direitos fundamentais na atualidade.
Hoje tornou-se bastante problemático querer limitar a ciência do Direito a uma análise descritiva da legislação ou de seus efeitos sociais, visto que o seu objeto deve ser também o processo da aplicação das leis, e a sua função prática consiste em resolver conflitos por decisões racionais, seus pressupostos, critérios e limites (
A atividade que os juristas normalmente exercem de fato não está fora do âmbito de um possível enquadramento no termo vago
Declarar que o Direito é uma
A adesão às lições kelsenianas, sem as devidas adaptações ao Direito contemporâneo, deixa de levar em consideração importantes resultados da discussão justeórica e filosófica após a Segunda Guerra (
Na verdade, a Teoria Pura, que entende o Direito como mero “dever-ser fático”, rejeitando a inclusão da dimensão do valor normativo e da perspectiva da efetividade social nos seus objetos de investigação, despreza o próprio
Assim, a estrita visão positivista leva à construção de uma teoria meramente formal, para a qual os juízos de valor – denunciados como “irracionais” – jamais podem ser científicos. Todavia, a aplicação das normas jurídicas a casos concretos e a dogmática sempre vão se basear, em grande medida, em um pensamento orientado a valores, fato de que muitos operadores não têm clara consciência, pois não consideram os juízos de valor como suscetíveis de fundamentação racional (
Todavia, para a afirmação apodítica que “não faz sentido” indagar sobre juízos de valor nas decisões jurídicas, basta “restringir suficientemente o conceito de ‘sentido’ para poder declarar em relação a todas as perguntas incômodas que não se consegue ver algum ‘sentido’ nelas”. Com pessoas que reconhecem como “razoáveis” apenas questões pertencentes às ciências empíricas, é igualmente “inócua qualquer discussão sobre o conceito do sentido; uma vez entronizado, esse dogma de sentido estará imune a todo o tipo de ataque para sempre” (
Quem nega ser possível estabelecer “pautas de preferência para as opções axiológicas” por serem problemas de valor, inacessíveis a critérios racionais, é incapaz de esboçar uma base metodológica para o elemento essencial da prática jurídica: a decisão judicial, considerada por Kelsen um mero ato de vontade. Todavia, a experiência jurídica não pode ser reduzida a formas e estruturas (
É essa natureza do Direito que não combina com uma “ciência pura de espírito”, mas clama por uma verdadeira ciência de ação – uma “teoria em serviço da práxis” jurídica –, a qual procura conhecimento teórico em função da decisão prática que se pretende produzir mediante o Direito. Por isso, é coerente ver o objeto da ciência jurídica menos nas regras, mas nos fatos sociais dos quais elas são valorações (
Em vez de especular abstratamente sobre a “essência do Direito” para determinar
Sem dúvida, do ponto de vista científico, tanto o realismo jurídico, que entende o Direito como algo meramente empírico, quanto o “idealismo lógico-jurídico” de matiz kelseniano representam teorias perfeitamente defensáveis. No entanto, ambas as teorias “cortam o Direito pela metade”, suprimindo ou sua dimensão normativa ou seu elemento fático, com a consequência de que a parte omitida é expulsa também do âmbito da própria racionalidade jurídica, assumindo o caráter (mais ou menos) irracional, no sentido subjetivo ou político. “Ambas as formas de autolimitação possuem a desvantagem de encurtar – para poder manter um conceito mais pretensioso de ciência – o conceito de racionalidade de tal forma que ele não consegue mais abarcar todo o processo da decisão jurídica” (
A disciplina jurídica, tradicionalmente considerada uma arte, sempre intentou convencer os interessados nas lides judiciais acerca de sua racionalidade. Em tempos modernos, a melhor forma de o Direito alcançar esse fim tem sido provar a sua cientificidade, demonstrada através de uma autêntica metodologia, isto é, um procedimento racional por meio do qual uma assertiva pode ser confirmada ou refutada. O fato de ser a pré-compreensão subjetiva do intérprete que normalmente leva à hipótese de solução do caso, a ser verificada depois mediante a aplicação dos métodos jurídicos, não invalida o caráter científico do Direito, enquanto os pré-juízos que motivaram o julgador são revelados (
Assim, o “desafio kelseniano” referente à impossibilidade de se afirmar cientificamente se uma interpretação leva ao “verdadeiro” significado de uma norma jurídica ou conduz à “ruptura anticientificista” do Direito. Desde que todo rigor lógico da Teoria Pura tinha levado apenas a um “resultado pífio”, isto é, imprestável para dar suporte à prática da aplicação do Direito, a doutrina jurídica começou a procurar alternativas não exploradas para fundamentar o seu próprio estatuto científico (
O termo
Essa verdade se estabelece pela descrição correspondente à realidade experimentada pelos sentidos, uma concepção que limitava bastante as ciências, principalmente onde não fosse possível utilizar apenas os sentidos. A ciência do Direito teria de ignorar por completo a abertura para os valores, como a pretensão de correção, a justiciabilidade, a dignidade humana, entre outros aspectos necessários à solução dos problemas reais, objetos de decisões jurídicas. A abertura da ciência jurídica contemporânea se deu com
A verdade, tema fundamental da ciência, é ressignificada, o que não leva necessariamente à anarquia metodológica, uma vez que não se abandonam os valores do “verdadeiro” e do “falso” (
Kelsen era influenciado pelo conceito de ciência do positivismo, baseado na comprovação “verdadeira” do conhecimento pela simples descrição, o que o levou a afirmar que juízos de valor não poderiam ser justificados cientificamente. No entanto, basta que se supere esse tipo de ciência como referencial teórico, para que essa (pretensa) impossibilidade seja fortemente enfraquecida, diante da necessidade de se ter um método apropriado para os problemas práticos. Além disso, é questionável a diferença rígida entre fatos e valores, adotada pelo positivismo, que levou Kelsen a distinguir entre a realidade (“ciência”) e o juízo de valor (“política”).
Essa distinção não se sustenta para quem não considere a ciência uma atividade de mera constatação, mas de construção a partir do paradigma vivenciado, o que abrange as teorias e interpretações. O objeto ou a “realidade” a ser descrita não passa de uma construção do próprio observador, a partir do seu paradigma, tendo em vista que não há uma linguagem exclusivamente voltada a relatar “um mundo plenamente conhecido de antemão” que produza “meras informações neutras e objetivas sobre ‘o dado’” (
A orientação positivista tem de enfrentar um dilema: ou negará a objetividade de todos os valores ou tentará dissociar os valores cognitivos dos valores éticos propriamente ditos. Na primeira escolha, o positivismo terá de admitir a justificação científica como algo puramente subjetivo e, por conseguinte, deixar de ser positivista e passar a ser epistemologicamente relativista. Na segunda escolha, concluirá que inexiste um critério objetivo e seguro para distinguir a linguagem descritiva da valorativa (ex.: a frase “Calígula era um tirano louco” pode ser um julgamento descritivo e verdadeiro, mas também um julgamento de valor). Os termos verdade, simplicidade, pertinência ou coerência revelam que existe um vasto conjunto de interesses e valores nas próprias condições de se julgar um conhecimento como científico, de maneira que um acordo ou desacordo de “fatos” pode ser idêntico a um desacordo de valores (
O conhecimento sobre a interpretação/aplicação das normas jurídicas, enquanto atividades humanas, não pressupõe juízos de valor de forma diferente do que qualquer outra forma de conhecimento, haja vista a própria realidade ser moldada a partir do paradigma vivenciado, ainda que com base em elementos compartilhados de conhecimento. Não se pode dizer que é impossível trabalhar com racionalidade as questões relacionadas à interpretação/aplicação do Direito somente porque elas pressupõem valorações, já que a distinção entre fatos e valores é tão artificial e valorativa como qualquer outro valor. É viável, sim, justificar racionalmente a interpretação na ciência do Direito (“jurisprudência”).
A ideia kelseniana de que a interpretação do Direito tem por base a
Esse aspecto, contudo, não torna o processo de interpretação/aplicação do Direito necessariamente irracional, até porque são criticáveis as ideias do não cognitivismo ético e do subjetivismo moral diante das inevitáveis valorações inerentes às atividades humanas e da impossibilidade do conhecimento puramente descritivo (
Ademais, deve ser levado a sério o dever de fundamentação das decisões judiciais, previsto no art. 93, IX, da Constituição Federal, que faz que a interpretação/aplicação do Direito não fique entregue ao irracional. Essa fundamentação serve justamente de limite ao aspecto volitivo dos aplicadores do Direito enquanto metódica que permite o controle público da decisão. Afinal, um Estado republicano não comporta exercício de poder a não ser na “qualidade de agente delegado da coletividade”, que deve satisfação pelos seus atos (
O novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15, art. 489) (
Entretanto, somente o dever de fundamentação e motivação não tem força suficiente para garantir a limitação ao aspecto volitivo do ato de interpretação do Direito, mormente quando o ambiente nada fizer contra eventuais abusos. Em perspectiva retórica, se o magistrado disser que “decide conforme sua consciência”, se alegar que possui “notório saber”, e por isso não precisa consultar a doutrina, ou se decidir abertamente contra o sentido literal da lei, e esta atitude for confirmada pelo ambiente da comunidade jurídica, “então é isso mesmo” (
O que interessa aqui é que o argumento kelseniano para objetar a racionalização da interpretação jurídica acaba sendo enfraquecido diante do dever de fundamentação dos operadores oficiais do Direito no Brasil. Nada impede que o elemento volitivo do aplicador seja justamente o de fazer a coisa que acredita certa cognitivamente, visto que não é mais aceitável tratar os juízos de valor, que guiam o processo de interpretação jurídica, como se fossem apenas ligados aos “impulsos, emoções e interesses de cada julgador, que escapam a qualquer controle da ordem jurídica” (
Assim, a presença de elemento volitivo na interpretação do Direito não conduz a uma inevitável irracionalidade no seu resultado; a racionalização desse processo corriqueiro pode ser alcançada na medida em que a sua metódica for estudada e trabalhada melhor. Nesse sentido, o dever legal de fundamentação das decisões do Poder Judiciário permite um controle mais denso das suas decisões.
Como vimos, Kelsen entendia a aplicação do Direito por um órgão estatal como a ligação entre um ato de
Para ele, a norma de nível superior não pode vincular sob todos os aspectos o ato de sua aplicação, restando sempre uma margem (maior ou menor) de livre apreciação. A norma do nível superior sempre possui, em relação ao ato de produção ou de execução normativa, o caráter de um “quadro” ou de uma “moldura” a ser preenchido (
A interpretação jurídica estaria sempre limitada à
Kelsen não informa quais seriam os métodos interpretativos aptos “para constatar os limites da norma, isto é, para traçar a moldura”. Por isso, a decisão sobre o significado da norma no caso concreto cabe apenas ao “intérprete autêntico”, ainda que a sua leitura seja amplamente rechaçada pela doutrina jurídica. Isso quer dizer que, no fundo, “tudo pode ser apresentado como situado dentro da moldura” (
Esse resultado talvez surpreenda, mas é confirmado pelo próprio Kelsen quando alega que o órgão jurídico competente poderia também “produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa” (
Na visão kelseniana, há, portanto, sempre, primeiro um ato cognitivo de interpretação, que é seguido por um ato volitivo. Este último se dá somente a partir do ponto em que o esforço intelectual não tenha levado a nenhum resultado concreto. Rechaça-se a ideia de que a “complementação” (ou integração) do Direito seja função legítima da dogmática jurídica (
Enquanto o juiz não abandonar o círculo da moldura legal, o positivismo kelseniano aceita que ele tome “a sua própria decisão”, naturalmente motivada por aspectos político-ideológicos, o que torna inviável distinguir entre opiniões jurídicas (ainda) racionalmente defensáveis e outras, situadas além desse limite. Esse labor tão essencial ao progresso do Direito não é reconhecido como “científico”, sendo, por isso, expulso da Teoria Pura. Aqui há confusão indevida entre razão jurídica e ideologia, categorias que podem e devem ser separadas: o raciocínio jurídico, que não se resume à estrita interpretação textual e à subsunção, não se transforma, necessariamente, em pensamento “político” (
A objeção kelseniana à possibilidade de se declarar certa interpretação como mais correta do que outra, quando ambas estão dentro da moldura normativa, representa o extremo oposto da ideia de uma “única resposta correta” na interpretação/aplicação do Direito. Segundo essa tese, introduzida por
Para o autor norte-americano, até nesses casos, sempre há só uma resposta correta, a ser produzida a partir dos “direitos enquanto trunfos” e dos princípios morais e jurídicos. O encontro dessa resposta é ilustrado pelas metáforas do “juiz Hércules” e do “romance em cadeia” (
No caso brasileiro, prevalece a função do Legislativo de estabelecer textos normativos, assim como previsto na Carta de 1988. Para esse contexto, a proposta de Dworkin vai longe demais quando aceita como Direito os princípios morais. O fato de que existem textos legais que permitam mais de uma interpretação não significa que a sua interpretação/aplicação não pode ser feita a partir de critérios de racionalidade, aptos a eliminar pelo menos algumas possibilidades interpretativas. As tensões entre a legislação e a realidade não precisam ser resolvidas tão somente pelo legislador; nos casos mais difíceis, deslocam-se para o juiz e para a doutrina dogmática (
A teorização do Direito deve abordar a questão da sua interpretação e aplicação, inclusive com uma teoria da decisão judicial, mas não precisa de uma formulação moral que presuma uma única resposta correta. Isso porque a tese a qual defende que haja somente uma resposta correta reconhece a impossibilidade de provar qual seria. Além disso, ela trabalha com a ficção exagerada do “juiz Hércules”, que levanta a pergunta de se este, em face dos possíveis recursos a instâncias superiores, transformar-se-ia em um “Meta-Hércules” (
Refletir sobre as relações de indeterminação do Direito e sua possível superação – sobretudo a maneira adequada e justa de decidir um caso concreto – significa entrar em um campo que vai muito além de uma ciência “pura”. Apesar da junção racional de argumentos em favor ou contra uma solução, jamais será possível indicar apenas
É preferível aprofundar a perspectiva da justificação da decisão como procedimento, já que é necessário conferir legitimidade e certeza à função judicial, o que pode ser alcançado apenas mediante o uso de argumentos apropriados. Somente assim é possível superar os extremos das teorias de Kelsen e Dworkin e cumprir o dever legal de fundamentação das decisões jurídicas.
Nessa mesma linha,
Nos casos difíceis, é sempre possível questionar as premissas de inferência, que devem ser objeto de argumentação; é essa a tarefa da justificação externa (
Vê-se, portanto, que o esquema da moldura kelseniana é resultado de uma frustração de não se ter
Outra ideia problemática é o relativismo absoluto no conteúdo do Direito defendido por Kelsen. Em uma sociedade aberta, em que se “rejeita a autoridade absoluta do que é meramente estabelecido e meramente tradicional” (
A impessoalidade, nessa concepção, toma conta das relações sociais oficiais, conforme a Constituição (art. 37) prescreve para a Administração Pública. Isso não impede tratamentos privilegiados para algumas classes ou pessoas, visando a alcançar finalidades da própria ordem jurídica, desde que seja direcionado para todos os indivíduos em semelhante situação. Apesar do pluralismo da sociedade aberta, que amplia o espaço do relativismo, não são admissíveis tratamentos indignos ou degradantes ao ser humano, seja pela orientação doutrinária baseada na história do constitucionalismo (
Há quem afirme que os regimes autoritários se aproveitaram, de certa forma, das teorias positivistas dominantes na Europa nos anos 30. Para ascender ao poder, Hitler cumpriu, inicialmente, as exigências da Carta de Weimar, apesar de desprezá-la; as suas “Leis raciais de Nuremberg”, de 1935, foram aprovadas no Parlamento, respeitando-se as formalidades. Por essa razão, o juspositivismo foi profundamente desacreditado na Alemanha do pós-guerra. Não é exagerado dizer que o positivismo jurídico fracassou como método filosófico do Direito para impedir a insegurança, a incerteza e as violações a direitos humanos. Para evitar que tais violações se repitam, o novo constitucionalismo brasileiro coloca o ser humano como prioridade institucional da ordem jurídica, em respeito à dignidade que merece (
Na busca pela efetividade dos valores constitucionais, que servem como limites democráticos ao relativismo,
Nesse caminhar, a Teoria do Direito, enquanto mera descrição, perde espaço para teorias normativas voltadas à aplicabilidade das normas jurídicas, não fundadas em considerações de Direito Natural ou da metafísica, mas nos valores presentes na própria Constituição, cuja função é a de limitar o espaço do relativismo do Direito, inclusive em seu aspecto de aplicabilidade.
A relatividade, assim, tem seu espaço diminuído, embora não eliminado. Hoje, quase ninguém defende que o testemunho de uma mulher valha menos do que de um homem ou que sejam mantidas as desigualdades sociais, contrariando o art. 3º, III, da CF. Ante os valores constitucionais, o problema da relatividade do conteúdo do Direito perde espaço para a questão da solução racional de colisões ou disputas entre valores. A relatividade é associada ao sopesamento de valores, que não têm, objetivamente, pesos predefinidos.
Seria, então, esse o ponto em que a racionalidade da interpretação/aplicação é impossível? Na verdade, não. Como dito antes, não existe apenas uma resposta correta, de maneira que a produção de uma decisão pode ser racional, independentemente da possibilidade de se estabelecer previamente uma valoração “correta” sobre os valores em disputa. A decisão judicial deve se preocupar, para além de seu aspecto formal, com “certas regras de raciocínio e da lógica”, com o “lado consensual” consistente na busca para o alcance de “concordância sobre as valorações que influenciam a interpretação e as ideias finalísticas sobre as consequências” (
Essa constatação significa que a interpretação/aplicação do Direito nos casos envolvendo valores em disputa, embora racional, pode ter resultados incertos. O desafio teórico é relacionado à objetividade possível na argumentação, para que haja certa previsibilidade das decisões jurídicas. O problema que resta a ser enfrentado tem sua origem na axiologização dos direitos fundamentais, que levou à adoção da ponderação como “a forma de aplicação por excelência dos direitos fundamentais” (
Os críticos que denunciam a subjetividade e a irracionalidade do sopesamento deveriam responder primeiro até que ponto o Direito pode ser racional ou objetivo, não somente no âmbito do sopesamento. A subjetividade existente na ponderação, entretanto, somente evidencia o déficit de racionalidade enquanto técnica decisória, caso o nível de racionalidade pretendido seja extremado demais, a ponto de se partir de um rígido padrão binário redutor que conhece apenas as posições “completamente racional” e “irracional”. Muitas das críticas à ponderação limitam-se a denunciar o seu aspecto irracional e desconsideram o que ela pode oferecer para a justificação racional de decisões (
Racionalidade, objetividade e certeza precisam ser mais bem delimitadas nas críticas, para que não se exija um padrão ideal inalcançável. Se o desejo é de objetividade, o bom argumento também terá de ter certa objetividade, em uma equivalência de padrões. Vale dizer que, o padrão desejado ditará a qualidade do (bom) argumento. Este será racional nos limites do padrão de racionalidade possível, como será objetivo nos limites do padrão de objetividade possível e previsível nos limites do possível. Em geral, dever-se-ia admitir não ser possível um padrão de “racionalidade ou uma objetividade que exclua por completo qualquer subjetividade na interpretação e na aplicação do direito”. Isso porque, “no direito, objetividade não pode ser sinônimo de demonstrabilidade inequívoca, ou sinônimo de única resposta correta faticamente demonstrável” (
Já que foi revelado ao longo do tempo que o resultado da interpretação jurídica não pode ser julgado em termos estritos de verdade científica, é preciso fornecer meios para poder diferenciar seus resultados pelo grau de racionalidade, a partir de uma base referencial que permita a atribuição, pelo menos aproximativa, de correção objetiva às opções do intérprete (
Essa teoria encontra na realidade do mundo jurídico uma arena da argumentação prática, pois aplicar o Direito significa, sobretudo, justificar a efetuação de juízos de valor em diferentes contextos (
A retórica ganha força nesse ambiente em virtude da impossibilidade de se trabalhar com o ônus de demonstrar a verdade; em vez disso, é preciso argumentar pela plausibilidade, o que acaba por estabelecer limites para padrões excessivamente exigentes de racionalidade, objetividade e certeza. A objetividade possível no Direito está ligada aos aspectos da possibilidade de controle intersubjetivo e da previsibilidade da decisão.
Uma boa argumentação precisa viabilizar o controle intersubjetivo e garantir certa previsibilidade, o que somente será alcançado mediante a ponderação, caso haja preocupação com outros três aspectos: o metodológico, que resulta na recusa de preferências sem fundamentação expressa; o teórico, que impõe a revelação da teoria subjacente ao método utilizado; e o institucional, relacionado a precedentes e ao controle social por acaso existente (
Essa boa argumentação, isto é, a possibilidade de alcançar a objetividade, racionalidade e certeza possíveis no Direito, em casos difíceis ou que envolvam ponderação, necessariamente precisará observar esses três aspectos. Em relação ao aspecto institucional, no Brasil, pode-se constatar a falta de padrões hermenêuticos mais apurados e de uma dogmática sofisticada para os intérpretes/aplicadores dos textos normativos (
Por outro lado, o novo Código de Processo Civil traz em seus artigos 926 e 927 um dever de respeito às decisões anteriores, enquanto condição de validade da própria decisão. Assim, eventual desrespeito à argumentação anteriormente solucionadora de um caso concreto e ao seu resultado significa invalidade da decisão não somente pela incompatibilidade material, mas também pela violação formal das balizas materiais já construídas, que significam bons argumentos para casos futuros. Por isso, conhecer o que é um bom argumento talvez seja a mais relevante condição para se conferir uma racionalidade com objetividade e, consequentemente, previsibilidade ao processo de interpretação/aplicação do Direito, que precisa de limites materiais.
O bom argumento, entretanto, não pode ser considerado fora do contexto da própria “natureza hermenêutica” do Direito, para que não se sobrestimem as críticas à falta de objetividade mais forte na delimitação dos bons argumentos. É por isso que a solução dos problemas que envolvem casos jurídicos costuma ser alcançada por meio de “pontos de vista” (
Nessa linha, um bom argumento nada mais é do que um raciocínio externalizado anteriormente – seja no âmbito teórico, seja no prático – e suficientemente capaz de servir de justificação racional para a solução do caso concreto, pelo seu compartilhamento teórico ou prático. Isso tornaria a argumentação dependente das decisões judiciais, aproximando-a do realismo interpretativo, em que as interpretações “autênticas” seriam os bons argumentos futuros, diante do elevado nível de publicidade das sentenças e de sua oficialidade. A argumentação igualmente ficaria dependente do desenvolvimento doutrinário, mormente em casos ainda não decididos pelo Judiciário. Assim, temas sem nenhuma tradição doutrinária ou judicial seriam temas com possibilidades menores de objetividade.
Bom é aquele argumento cuja utilização concreta recebe uma valoração positiva, que não pode ser de princípio valorado abstratamente, razão pela qual não é possível indicar um único conteúdo abstrato e universal apto a servir de critério à sua identificação. A partir de seu uso anterior, entretanto, torna-se viável sua valoração, com potencial de utilização em casos futuros. A objetividade possível do Direito é que leva a isso. A jurisprudência hermenêutica e a teoria realista da interpretação, embora divirjam em alguns aspectos, contribuem para a formação de um padrão decisório baseado na interpretação e nos limites da objetividade possível do Direito (
Por outro lado, é possível a existência de bons argumentos com intensidade maior de objetividade, geralmente utilizados para os casos “fáceis”, que são os métodos tradicionais, os quais, embora não levem à verdade ou à decisão cientificamente correta, “servem como boas razões no processo discursivo de uma argumentação” (
Nesse ponto, a tradicional função contramajoritária do controle de constitucionalidade não passa de um bom argumento para justificar que as maiorias não podem abusar de sua posição de superioridade em detrimento das minorias. Assim, pode-se afirmar que os “novos papéis” do Supremo Tribunal Federal, propostos por
O conceito de
A restrição kelseniana da função da ciência do Direito a expor apenas as possibilidades de significado de uma norma, sem poder destacar uma delas como “a correta”, contradiz tanto o autoentendimento como a práxis da dogmática jurídica. Ademais, gera o problema de deixar o juiz sem propostas qualificadas sobre as possibilidades de desenvolver, de maneira crítica e inovadora, o Direito (
Também não é possível separar a própria ciência (objetiva) do Direito da sua aplicação, permitindo-se manifestações subjetivas somente no âmbito da última. É justamente a sua função “tornar convincentes” as valorações que ela contém, “apesar de não lhes conferir caráter vinculante” (
O típico trabalho do profissional do Direito (seja ele juiz, administrador ou doutrinador) não se resume a descrever apenas as diferentes possibilidades interpretativas das normas, limitando-se a sistematizá-las e a analisar a sua aptidão para alcançar os fins colimados pelo legislador, sem o acréscimo de opinião (= valoração) própria. Uma das mais importantes tarefas da doutrina jurídica é justamente oferecer decisões claras ao operador prático, que têm o seu fundamento em interpretações “corretas”, sustentadas por argumentos racionais e bem ponderados (
Contra a visão de uma doutrina descritiva fala o próprio conceito da “jurisprudência”, que, em países, como Alemanha, França, EUA ou Reino Unido, abrange tanto a atuação científico-acadêmica quanto a forense e a prática generalizada da ciência do Direito, cujos representantes costumam formular também juízos de valor. Assim, não é exagerado vislumbrar a jurisprudência como uma mistura de “fidelidade à lei, política jurídica, experiência própria e alheia, opinião pessoal, natureza da coisa, linguagem tradicional de fundamentação e decisionismo” (NAUCKE, 1972, p. 46 apud
Assume a perspectiva de
Assim, a ciência do Direito “transporta o Direito para um contexto de fundamentação”, cuja sistemática não se orienta apenas a textos legais e decisões judiciais ou administrativas (
Cumpre lembrar também que, diferentemente de outras áreas do saber, o Direito não conhece uma contraposição entre o enfoque teórico-interpretativo e o trabalho de aplicar leis a casos concretos, visto que as peças, petições, apelações, sentenças etc. produzidas pelos integrantes das profissões jurídicas sempre serão arrazoadas, empregando-se conceitos e categorias provenientes de reflexões teóricas mais abstratas (
Partindo-se de uma análise formal orientada por certos modos de sentença e julgamento, a dogmática jurídica aparece como uma mistura indissolúvel de assertivas empíricas, conceitual-analíticas e valorativas. Essa situação talvez seja pouco satisfatória do ponto de vista científico-teórico; entretanto ela faz muito sentido para a prática, já que o cientista dogmático não ocupa uma posição de mero observador externo (como nas ciências empíricas), mas age, igual ao juiz, na perspectiva de um participante cuja intenção é chegar, na base do Direito vigente, a resultados “racionais”, “justos” e “adequados”, com a diferença de que o juiz sempre
É de se perguntar também que juiz ou agente da Administração Pública levaria a sério a opinião de um cientista dogmático que se esquivasse de defender pessoalmente as necessárias valorações do resultado por ele sugerido, assumindo a posição de mero observador externo (
Constata-se, com
Depois da abordagem das objeções kelsenianas à cientificidade da análise da interpretação/aplicação do Direito, resta observar que suas críticas são resultado do próprio conceito positivista de ciência que adota. Esse conceito, baseado nas ciências exatas e na comprovação empírica, levaram Kelsen a uma posição exacerbada de defender a mera descrição do Direito e de diferenciar rigidamente entre juízos de fato e juízos de valor, alegando que estes seriam inviáveis quanto ao conhecimento científico.
Essa distinção entre fatos e valores mostra-se tão subjetiva, artificial ou valorativa como a adoção de qualquer outra posição, a partir da ideia de que todo conhecimento é construído e não meramente constatado, como se fosse um espelhamento da natureza com base em uma mera presença. Essa orientação levou Kelsen a afirmar que a interpretação/aplicação do Direito seria resultado da prevalência da vontade sobre a racionalidade. Isso, porém, mostra-se incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais estatuído na Constituição brasileira. A mera presença do elemento volitivo inerente a qualquer ato humano não impede que se interprete/aplique o Direito de forma racional.
Ainda que esse dever constitucional não tenha o condão de modificar, por si, as condições epistemológicas de produção de um conteúdo decisório por parte de um juiz, a compreensão kelseniana do problema facilmente levará ao esvaziamento da disposição constitucional. De qualquer maneira, a exigência da Lei Maior brasileira de que as decisões sejam fundamentadas obriga o decisor que apresente motivos coerentes, conquanto que estes não precisam corresponder, necessariamente, ao conceito de racionalidade empregado por Kelsen.
A ideia kelseniana acerca das possíveis diferentes interpretações dos textos normativos leva à posição extrema de que o limite da ciência do Direito seja a moldura das possibilidades de sentido. Por isso, não seria possível uma teoria racional da interpretação/aplicação do Direito, já que a preferência por uma das possibilidades nada mais é que vontade política. No lado oposto, Dworkin enfrenta a prevalência da vontade sobre a racionalidade a partir da proposição de que somente existiria uma única resposta correta para cada caso concreto.
O extremismo de ambas as posições leva à conclusão de que é mais apropriada para a realidade do sistema jurídico brasileiro a adoção da teoria da melhor justificação possível, cujos resultados são incertos, mas que obriga o intérprete/aplicador do Direito a verificar sempre a possibilidade de chegar a uma decisão razoavelmente objetiva e racional, principalmente em casos difíceis. Essa objetividade do Direito somente se dará em um sentido fraco, de forma que os bons argumentos componentes da melhor justificação possível seguirão sempre o padrão de objetividade possível do Direito. Isso, entretanto, não impede que se diga que a interpretação/aplicação do Direito pode ser racional.
Até hoje, há quem declare em congressos jurídicos, com ares de importância, que, perante a “confusão interpretativa” que predominaria nos tribunais brasileiros, com decisões subjetivas, imprevisíveis e mal fundamentadas, dever-se-ia “voltar ao positivismo de Kelsen”, como se este fosse um porto seguro no meio da tempestade. Cabe arguir se as lições positivistas, mormente as kelsenianas referentes à interpretação jurídica, realmente são capazes de remediar a doença ou se elas não fazem parte dos próprios fatores que causaram esse mal-estar no Brasil.
Entendemos que, na interpretação do Direito, “o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são dois atos separados, mas um processo unitário.” (
Ultrapassa o escopo deste trabalho a apresentação das diversas correntes do juspositivismo (exclusivo e inclusivo), bem como a discussão das teses de seus principais defensores. O tema aqui abordado se restringe à crítica da teoria de interpretação de Kelsen, um dos representantes mais importantes do