ojRevista Opinião JurídicaR. Opin. Jur.1806-04202447-6641Centro Universitário Christus10.12662/2447-6641oj.v18i29.p49-76.2020ArtigosEfetividade Dos Direitos Humanos E Democracia: A Soberania
Constitucional Cooperativa Entre A Ordem Estatal E A Ordem Internacional Na
Sociedade Do Risco E Da InformaçãoEffectiveness Of Human Rights And Democracy: Cooperative
Constitutional Sovereignty Between The State Order And The International
Order In The Risk And Information SocietyEfectividad De Los Derechos Humanos Y Democracia: La Soberanía
Constitucional Cooperativa Entre El Orden Estatal Y El Orden Internacional
En La Sociedad Del Riesgo Y De La Información0000-0003-0772-4450CaldasRoberto Correia da Silva Gomes*0000-0003-4616-9138TomazCarlos Alberto Simões de**Universidade Federal de Minas
GeraisSão PauloSPBrasilrobertocsgcaldas@uol.com.brBacharel em Direito, Mestre e Doutor em Direito
do Estado, respectivamente em Direito Tributário e Administrativo, pela PUC/SP -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor permanente dos Cursos
de bacharelado e Mestrado em Direito do Centro Universitário das Faculdades
Metropolitanas Unidas - FMU. Professor convidado dos Cursos de Mestrado e
Doutorado da UNICURITIBA. Professor licenciado da Faculdade Paulista de Direito,
da PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor permanente
dos Cursos de Maestría en Derecho de las RRII y de la Integración en América
Latina de la UDE - Universidad de la Empresa - Montevidéu/Uruguai, e de “Master”
em Direito sobre "Contratación pública sostenible" na Faculdad de Ciencias
Jurídicas y Sociales de Toledo da UCLM - Universidad de Castilla-La Mancha.
“External Researcher” da Cátedra Jean Monnet em Direito da UFMG - Universidade
Federal de Minas Gerais. Coordenador da Rede de Pesquisa “Integração, Estado e
Governança”. Diretor de Relações Institucionais do IASP - Instituto dos
Advogados de São Paulo. Advogado em Portugal e no Brasil. São Paulo/SP/Brasil.
E-mail: <robertocsgcaldas@uol.com.br>.Universidade Federal de Minas
Geraisca.tomaz@uol.com.brPós-doutor em Filosofia do Direito pela
Universidade de Coimbra. Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos - UNISINOS/RS. Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Centro
Universitário de Brasília - UniCEUB/DF. External Researcher do Centro de
Excelência Jean Monnet em Direito da UFMG - Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail: <ca.tomaz@uol.com.br>.30072020Sep-Dec2020182949761405202024072020Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a
licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e
reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original
seja corretamente citadoRESUMOObjetivo:
O artigo tem por escopo analisar a projeção da soberania constitucional
cooperativa no âmbito interno dos Estados e na ordem internacional da
contemporânea sociedade do risco e da informação, tendo como preocupação a
efetividade dos direitos humanos ou fundamentais (ou ambos), para questionar
a vivência democrática numa e noutra ordem.
Metodologia:
Segundo uma metodologia própria para lidar com temas interdisciplinares
específicos, como de Direito Internacional, da Integração, Constitucional e
Sociologia Jurídica, parte-se de um recorte crítico da realidade exposta,
tendo-se como marco teórico a doutrina contemporânea referida, ao adotar-se
o método dedutivo, com apoio da exploração bibliográfica e documental
enquanto técnica de abordagem, para se comprovarem as premissas levantadas e
se alcançarem os objetivos propostos.
Resultados:
Divisa, sob tal contextura, a perda do monopólio estatal de criação e
aplicação normativas, com a exsurgência de novos polos definidores de
conteúdos (nocivos e benignos) que ensejam profundas modificações tanto no
plano interno quanto no plano externo, em que a atuação dos mais variados
agentes - entre eles, e ainda com centralidade, o Estado - ampara-se em
operações transjuncionais que marcam a hipertrofia dos sistemas econômico e
político em detrimento da autonomia do sistema jurídico, o que se erige em
prejuízo da efetividade dos direitos humanos ou fundamentais (ou ambos).
Contribuições:
O estudo aponta, segundo a metodologia adotada, a soberana função
sistêmico-integradora da Constituição que se apresentaria, na atualidade,
como um espaço normativo voltado a permitir uma salutar inter-referência
entre os sistemas jurídico, político e econômico, de maneira a ter-se, em
conclusão, um canal heterárquico e cooperativo de equalização dos interesses
recíprocos no concerto democrático.
ABSTRACTObjective:
The article aims to analyze the projection of cooperative constitutional
sovereignty in the internal ambit of the States and in the international
order of the contemporary society of risk and information to question the
democratic experience in one order and another, having as concern the
effectiveness of human or fundamentals rights (or both).
Methodology:
According to an appropriate methodology to deal with specific
interdisciplinary themes, such as International Law, Integration Law,
Constitutional Law and Legal Sociology, it is from a critical view of the
exposed reality, taking as a theoretical framework the contemporary doctrine
referred to, when adopting the deductive method, with the support of
bibliographic and documentary exploration as an approach technique, to prove
the premises raised and to achieve the proposed objectives.
Results:
Under such a context, the paper identifies the loss of the state monopoly of
normative creation and application with the exsurgency of new defining poles
of noxious and benign contents that lead to profound changes in both orders,
internal and international, where the performance of the most varied agents
- between them, and still with centrality, the State - sustains on
transjunctional operations that mark the hypertrophy of the economic and
political systems to the detriment of the autonomy of the legal system,
which is erected to the harm of the effectiveness of human or fundamentals
rights (or both).
Contributions:
The article notes, according to the adopted methodology, the systemic-
integrating sovereign function of the Constitution that would present
itself, nowadays, as a normative space aimed at allowing a healthy
inter-reference between the legal, political and economic systems, in order
to have, in conclusion, a heterarchic and cooperative channel for equalizing
reciprocal interests in the democratic concert.
RESUMENObjetivo:
El artículo tiene como objetivo analizar la proyección de la soberanía
constitucional cooperativa en la esfera interna de los Estados y en el orden
internacional de la sociedad contemporánea del riesgo y de la información,
teniendo como preocupación la efectividad de los derechos humanos o
fundamentales (o ambos), para cuestionar la experiencia democrática en uno y
otro orden.
Metodología:
De acuerdo con una metodología adecuada para tratar temas interdisciplinarios
específicos, como Derecho Internacional, de la Integración, Constitucional y
de la Sociología Jurídica, se ha partido de una visión crítica de la
realidad expuesta, teniendo la doctrina contemporánea mencionada como marco
teórico, al adoptar el método deductivo, con el apoyo de la exploración
bibliográfica y documental como técnica de aproximación, para probar las
premisas planteadas y alcanzar los objetivos propuestos.
Resultados:
Bordea, en este contexto, la pérdida del monopólio estatal de creación y
aplicación normativa con la exsurgencia de nuevos polos que definen el
contenido (perjudiciales y benignos) y que conducen a cambios profundos,
tanto en el plan interno como externo, donde el desempeño de los más
variados agentes - entre ellos, y aún centralmente, el Estado - se basa en
operaciones transjuncionales que marcan la hipertrofia de los sistemas
económicos y políticos en detrimento de la autonomía del sistema jurídico,
que se erige en perjuicio de la efectividad de los derechos humanos o
fundamentales (o ambos).
Contribuiciones:
El estudio señala, según la metodología adoptada, la soberana función de
integración sistémica de la Constitución que se presentaría, hoy por hoy,
como un espacio normativo destinado a permitir una sana interreferencia
entre los sistemas jurídicos, políticos y económicos, a fin de tener, en
conclusión, un canal heterárquico y cooperativo de ecualización de intereses
recíprocos en el concierto democrático.
Palavras-chave:Soberania Constitucional Cooperativa. Ordens Democráticas Interna e
Internacional. Efetividade dos Direitos Humanos/Fundamentais. Sistemas
PolíticoEconômico e Jurídico. Sociedade do Risco e da Informação.Keywords:Cooperative Constitutional Sovereignty. Internal and International Democratic
Orders. Effectiveness of Human/Fundamental Rights. PoliticalEconomic and Legal Systems. Risk and Information Society.Palabras clave:Soberanía Constitucional Cooperativa. Órdenes Democráticas Internas e
Internacionales. Efectividad de los Derechos Humanos/Fundamentales. Sistemas
PolíticosEconómicos y Legales. Sociedad del Riesgo y de la Información.INTRODUÇÃO
A projeção da soberania constitucional no âmbito interno dos Estados e na ordem
internacional da contemporânea sociedade do risco e da informação, tendo como
preocupação a efetividade dos direitos humanos ou fundamentais (ou ambos), para
questionar a vivência democrática numa e noutra ordem, em si, para além das
indagações sobre ser necessário que os Estados sejam democráticos para que a ordem
internacional o seja, bem como sobre ser possível a ordem internacional global se
tornar democrática independentemente de alguns Estados não o serem, estabelece a
necessidade do exercício dessa soberania de maneira mais adequada à realidade
(heteráquica) dos dias atuais.
Para tanto, a influência da soberania constitucional na ordem interna estatal é
analisada sob o prisma do novo arranjo concertado em que se funda a hodierna relação
jurídica de Administração Pública, de sorte a se verificar como que essa soberania
se encontra exposta na ordem jurídica dos Estados, marcadamente à luz da perda do
monopólio por parte deste na criação e na aplicação normativas, ante a concorrência
de outros polos definidores de conteúdos que têm se apresentado ora nocivos, como os
advindos de organizações criminosas e cartéis econômicos, e ora benignos, conforme
os decorrentes de distintos setores privados com suas autorregulações que, por
vezes, são institucionalizadas, galgando o status de uma governança
pública regulatória participativa.
Por outro lado, quando levada a análise para a projeção da soberania constitucional
no plano externo, verifica-se que, da mesma maneira que no plano interno, a
autonomia do Direito padece frente às ingerências da Política e da Economia que
desbordam do inter-relacionamento salutar que deveria nortear as relações
intersistêmicas, o que somente pode ser contornado à luz de um Direito geral de
cooperação häberlesiano entre Estados (e entre estes e suas sociedades) no seio de
uma comunidade global comprometida com a realização dos direitos
humanos/fundamentais.
Nesse âmbito, ou seja, numa ordem internacional caracterizada pela ausência de um
polo nômico supremo - o que coloca novas luzes no conceito de soberania -, a
convivência de vários polos públicos e privados benignos de poder (v.
g., a ONU com suas distintas organizações internacionais, além das
instituições privadas transnacionais e entidades representativas da sociedade civil
- in casu, criadoras de global governance e
autorregulação setorial global, como os Princípios do Equador, Princípios
Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas, Declaração
Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social etc.), em
paralelo, não se pode deixar de registrar, com outras distintas poderosas redes
criminosas e, por isso, nocivas (as quais implicam corrupção e cooptação de agências
reguladoras a prol de interesses particulares, entre outros ilícitos), com ambos os
referidos segmentos sendo notadamente vinculados aos sistemas econômico e político,
a sua vez, transforma a ordem internacional numa ordem global, multilateral,
heterárquica, policêntrica e, assim, multifacetada, que se convencionou acoimar de
multi-stakeholderism.
Nesse espaço, as relações entre os polos heterárquicos desenvolvem-se por meio de
operações transjuncionais que prejudicam a concreção dos direitos humanos e/ou
fundamentais, tal qual acontece na ordem constitucional dos Estados, os quais, por
isso, se veem sufocados pela hipertrofia da atuação desses referidos polos e seus
correlatos sistemas (heterárquicos), em claro detrimento de uma maior inclusão
social.
Uma institucionalização/programação tanto interna quanto internacional para, em nome
do concerto democrático de uma soberania constitucional cooperativa, proceder aos
ajustes necessários em defesa da inclusão social e, assim, da mais ampla efetivação
dos direitos humanos/fundamentais, é o que os Estados devem procurar, inclusive
segundo uma governança resiliente concertada (global e regulatória) que se mostre
adaptativa/transformadora das estruturas organizacionais e procedimentais dos
distintos atores, bem como capaz, inclusive, de permitir se identificar quais destes
são nocivos a tal inclusão social alvitrada, eliminando-os ou afastando-os em um
processo dialógico definidor dos conteúdos a serem discutidos. Tornar evidente tais
problemas - objeto deste artigo - já é um ponto de partida significativo.
Desse modo, o artigo se valeu para tal mister do método dedutivo, partindo de um
recorte crítico da realidade exposta, de pesquisa bibliográfica em sua técnica de
abordagem, tendo como referencial teórico a teoria dos sistemas de Luhmann (2002), com os desdobramentos
teoréticos de Neves (2006) e Teubner (2003), bem como a concepção de
soberania constitucional exposta por Voigt
(2013) sob o influxo do constitucionalismo cooperativo de Häberle (2007), à luz de uma metodologia
própria para se expor de que forma a soberana função sistêmico-integradora da
Constituição, devidamente conformada à nova ordem global, a apresentaria como um
espaço normativo voltado a uma salutar inter-referência entre os sistemas jurídico,
político e econômico, de sorte a ter-se, em conclusão, um canal heterárquico e
cooperativo de equalização dos interesses recíprocos no concerto democrático.
A PROJEÇÃO INTERNA E EXTERNA DA SOBERANIA CONSTITUCIONAL EM FACE DO NOVO
ARRANJO COOPERATIVO DA ORDEM ESTATAL1
O pluralismo jurídico-político imprime, sem dúvida, uma perda da significação do
Estado em sua concepção clássica, bem como introduz sensíveis alterações na ordem
interna e internacional. Efetivamente, o enfrentamento e o enfraquecimento da
capacidade de o Estado definir sozinho os conteúdos normativos e decidir sobre o
modo de sua aplicação tem revelado um lado muito preocupante da crise estatal
vivenciada em sua contemporânea sociedade do risco, sistêmico e reflexivo, conforme
explicitado por Lourenço (2019), e da informação, em rede, tecnológica e veloz,
consoante lecionado por Castells (2002).
Não há como negar a fragilidade a que se encontra exposto, nos dias atuais, aquele
que foi o centro de irradiação de decisões políticas e jurídicas e que, ainda,
apresentava-se como o locus de exclusividade na definição dos seus
conteúdos, de tal maneira que não admitia, no plano interno, poder sequer igual ou
capaz de influenciá-lo nessa função, além de, no plano internacional, apenas
reconhecer outros de iguais poderes para garantir, assim, uma convivência harmônica
nessa ordem.
A irradiação da soberania nessa conformidade, como bem informa Cavalcanti (1900), encontra eco desde o pensamento medieval de
Bodin (1966) e Grotius (2005), os quais a concebiam como poder supremo que não
admitia nenhum outro maior que si (suprema potestas superiorem non
recognoscens); todavia, tal paradigma de soberania, enquanto um poder
absoluto, perpétuo, indivisível, inalienável e imprescritível (BODIN, 1966), ou seja, um poder incontrastável de mando, em
âmbito interno e internacional, não mais se compraz e sustenta diante da realidade
das relações internas e internacionais hodiernas.
É preciso ter-se presente, assim, que a soberania se extroverte sob distintas formas
com respeito à fundamentação e à execução, as quais, segundo Voigt (2013), são definidas em cada Estado como sendo
parlamentar, constitucional (jurídica) e do povo (direta), segundo um critério
distintivo entre o seu sujeito (Estado) e seu portador (povo), consoante
entendimento que se mostra a partir, e indo para além, do de Heller (1995), o qual, a seu turno, é fundamentado na teoria
hegeliana de Estado, visto enquanto a instância suprema de positivação de normas e,
repita-se, sujeito da soberania.
Com efeito, sob a forma jurídica de execução, a ideia de um poder soberano cuja
legitimação e limites encontram-se exclusivamente na norma por ele criada e aplicada
de modo impessoal - ou seja, dentro do domínio normativo de acordo com a visão
preconizada por Kelsen (1992)2 -, em si, entra em confronto com a hodierna
necessidade de convivência com outras forças regulatórias dos distintos setores da
sociedade, cuja legitimidade também se espraia em uma perspectiva internacional, a
qual, inclusive, antes era vista de atuação exclusiva do Estado (OLSSON; LAVALL, 2020). Dentro da visão
kelseniana, soberano seria apenas o
Estado cuja ordem jurídica fosse o ponto de partida de toda sua estrutura
[...] O Direito Internacional é válido apenas por ser reconhecido pelo
Estado mencionado em primeiro lugar, o qual é soberano porque a ordem
jurídica internacional é considerada parte de sua ordem jurídica e,
portanto, inferior a ela (KELSEN,
1992, p. 373).
Dessa forma, a postura estatal kelseniana de exercício da soberania, principalmente a
partir da última década do século XX, não mais se coaduna com a realidade dos dias
atuais em que vários outros distintos focos emissores de conteúdo normativo
(nacionais e estrangeiros) exsurgem em concomitância ao irrompimento do fenômeno da
globalização, no qual o exercício desse poder soberano do Estado se verifica
entrelaçado num amálgama decorrente da multiplicidade de relações concorrentes, as
quais, inclusive, não se projetam exclusivamente no campo normativo, mas também
político e econômico.
Atento a esse aspecto multidimensional de projeções da multiplicidade de relações em
que o Estado se verifica hoje envolvido, Ferrajoli
(2002, p. 1), de início, já chama a atenção para o fato de que a
“soberania é um conceito ao mesmo tempo jurídico e político, em
torno do qual se adensam todos os problemas e aporias da teoria juspositivista do
direito e do Estado.”
Deveras, assim como o próprio Direito não pode mais ser compreendido sob uma visão
exclusivamente normativista kelseniana, porque legitimado e operado mercê de um
complexo de relações de inter-referências que implicam competição e enfrentamento
social por parte de numerosas e heterogêneas forças sociais (ZAGREBELSKY, 2011), a soberania (sob uma óptica constitucional,
jurídica) igualmente não pode ser mais concebida, legitimada e operada segundo um
sistema jurídico hermeticamente fechado e estático, no qual o Estado é considerado
absoluto e como fonte exclusiva de criação e aplicação normativa (LAFER, 1995). De acordo com este autor
A lógica da Paz de Westfália que comporta, em tese, a noção de soberania
absoluta, não é compatível com as realidades contemporâneas e o seu direito
internacional, pois existem contradições entre ela e a experiência. A
primeira, que é constitutiva, reside na igualdade das soberanias, em teoria,
e na sua desigualdade, na prática. A segunda, que se tornou avassaladora
neste final de milênio, é a impossibilidade do isolamento, que vem levando à
interdependência dos Estados e ao transnacionalismo dos atores da vida
mundial - transnacionalismo não apenas dos mercados e dos agentes
econômicos, mas também dos meios de comunicação, da opinião pública, das
organizações não- governamentais. Daí a necessidade do mútuo reconhecimento
das soberanias, as exigências de cooperação através das organizações
internacionais e o multilateralismo das normas de mútua colaboração e o fato
de as soberanias se verem permeadas pela ação transnacional da qual é
exemplo a nova “lex mercatória” (LAFER,
1995, p. 140)
É por isso que, conforme informado por Lafer
(1995) em outra passagem, à luz da teoria de Grotius sobre a convivência
internacional dos Estados (fundada na existência de um potencial de socialidade e
solidariedade da sociedade global), na atualidade, tem-se a atribuição de
competências próprias das soberanias estatais a instituições supranacionais (com sua
clara limitação), segundo a ideia de interdependência (supra, inter e infra-estatal)
e funcionalismo em prol de um espontâneo cooperativismo - nos dizeres de Häberle (2007), constitucional - multilateral
para uma construtiva reciprocidade de interesses comuns, consoante se extrai do
processo de integração econômica mais bem sucedido, a União Europeia.
A partir daí, divisa-se uma concepção aberta da soberania constitucional globalizada
para havê-la cooperativa e mesclada numa rede de inter-referências
sociais partindo do sistema jurídico para os sistemas político e econômico, sendo,
assim, entendida como forma de comprometimento conjunto dos Estados e das
organizações não governamentais em prol da efetivação dos direitos humanos e/ou
fundamentais em uma sociedade da informação marcada pela insegurança decorrente dos
riscos insertos a tal cotidiana realidade (HÄBERLE,
2007). Nesse contexto, segundo Andreucci
(2019, p. 47)
Esta hiper-sociedade, pós, líquida, e imersa no risco, redefiniu relações de
sociabilidade, prioridades políticas, econômicas, empresariais, nacionais,
supranacionais sem, contudo, assentar os novos rumos e paradigmas de maneira
segura. O debate, assumindo sua condição pós- moderna, e na qual o termo
globalização se faz quase sempre presente, torna-se também aberto,
fragmentário, líquido, pressupondo o risco. Uma das características desta
nova realidade pode ser observada numa outra qualidade atribuída ao tempo e
ao espaço. Os deslocamentos e as fronteiras tornam-se mais difusos e a
dimensão planetária passa a ser um fator determinante na reconstrução do
Estado-Nação.
Essa visão de maior amplitude da soberania constitucional, tida como cooperativista e
concebida a partir do processo de mundialização (dito, mais comumente,
globalização), requer, não obstante, uma atenção redobrada, uma vez que tal
processo, por ensejar o aparecimento dos referidos distintos polos emissores de
conteúdo normativo em exercício direto do poder (soberania popular), permite que,
dentre eles, alguns se revelem nocivos e outros benignos à manutenção da ordem
pública nacional e internacional globalizante pré-estabelecida (ZAGREBELSKY, 2011).
É nesse contexto que Voigt (2013), após versar
sobre as distintas formas de soberania por ele alvitradas (parlamentar,
constitucional e do povo), procede à sua crítica da soberania, asseverando que
quanto ao seu viés global contemporâneo, à luz da doutrina de Hardt e Negri (2000), está-se diante de um “estado de guerra
global” - descrito por Virilio (1996) como um
“estado de emergência”, à luz da “guerra da informação” e do movimento de
globalização -, cuja violência que dele pode eclodir os Estados nacionais não são
capazes (ou fortes o suficiente) para sozinhos suplantarem, decorrendo, por isso, a
necessidade de uma nova forma de soberania neste âmbito, a
multitude, que, não sendo nem o povo, nem a massa, nem alguma
formação de classe trabalhadora, é composta de numerosas diversidades sociais
internas que podem nunca ser reduzidas a uma unidade ou identidade singular, embora
não se revele fragmentada, anárquica ou desconexa, moldando a sociedade de modo
autodeterminado.
Não obstante a acepção de multitude proposta por Hardt e Negri (2000) careça de um núcleo
essencial característico com maior densificação, a permitir que possa ser
especificado para uma aplicação conceitual melhor discernida, dela aproveita-se a
concepção de uma inerente capacidade de se autogovernar, preservando, assim, suas
pluralidade e diversidade irredutíveis ante a identificação em si de atos
multitudinários em um cenário nacional e internacional, criando, de conseguinte, um
espaço “comum” de emancipação do exercício global de poder, conforme salientam tanto
Browning e Kilmister (2006), como também o
próprio Voigt (2013).
Há de se registrar, ainda, a relevância dessa noção de multitude
estabelecida à luz de uma soberania popular exercida ao influxo do hodierno Estado
constitucional cooperativo (HÄBERLE, 2007),
porquanto, ao terem-se suas pluralidade e diversidade como irredutíveis, permite
afastar-se o efeito excludente da globalização quanto a certas vulnerabilidades ou
grupos que não se adaptem a si e às suas imposições uniformizadoras, as quais
assumem, assim, o feitio de uma tendência ainda em construção num conjunto de
processos cumulativos, consoante ressaltado, entre outros, por Castells (2001), Andreucci
(2019) e Andreucci e Nohara (2011).
Porém, apesar dessa concepção de multitude quanto à preservação das
pluralidades e das diversidades sociais (para considerá-las irredutíveis), bem como
à possibilidade que encerra de se afastarem os efeitos excludentes advindos da
globalização, é preciso não se olvidar que tal nova forma global de exercício da
soberania não impede que aquelas antes mencionadas forças normativas nocivas, a
exemplo do crime organizado, rompam as fronteiras do Estado nacional com a mesma
amplitude do capital, ciência, tecnologia e cultura, galgando a esfera
internacional.
A existência de redes criminosas internacionais, v. g., voltadas a
disseminar a violência e o tráfico de entorpecentes, órgãos, crianças, mulheres,
armas e capital ilícito, inclusive mediante corrupção e cooptação de agências
regulatórias, é fato comprovado. Segundo Castells
(2002, p. 40)
[...] as atividades criminosas e organizações ao estilo da máfia de todo o
mundo também se tornaram globais e informacionais, propiciando meios para o
encorajamento de hiperatividade mental e desejo proibido, juntamente com
toda e qualquer forma de negócio ilícito procurado por nossas sociedades, de
armas sofisticadas à carne humana.
E, em contraponto a tais vitandas forças normativas nacionais e internacionais, para
fazer face a esse fenômeno, tem-se o vicejamento das redes protetivas de atuação
regulatória autônoma em áreas não alcançadas pela legislação estatal - atuação,
esta, vista como “governança sem governo” (ROSENAU,
2000) ou, simplesmente, autorregulação -, se expressando sob as mais
variadas organizações não governamentais, em uma multiplicidade de esforços e
fontes, em cujo contexto, embebido na concepção de Estado constitucional cooperativo
(HÄBERLE, 2007) e de uma cidadania de
extensão internacional (BOLZAN DE MORAIS,
2011; BOLZAN DE MORAIS, NASCIMENTO, 2010), evidencia a ação de distintos
atores em setores variados, como a ecologia (Greenpeace), a defesa dos direitos
humanos (Anistia Internacional) e a promoção da saúde (Médicos Sem Fronteiras), a
revelar uma nova forma de multilateralismo, o multi-stakeholderism
(BENEDEK, 2011), o qual, embora não
substitua as formas tradicionais multilaterais, as complementa, garantindo
estruturas de governança mais inclusivas, conforme informam Olsson e Lavall (2020).
Esse amálgama de inter-referências, como se vê, ora se desenvolve em amparo ao
processo democrático, buscando a inserção do indivíduo e a integração de comunidades
ao escopo de tutelar e ensejar a eficácia, a eficiência e a efetividade dos direitos
humanos/fundamentais, e ora se desenvolve exatamente ao fito contrário. Sobre tal
circunstância, Zagrebelsky (2011, p. 38-39)
assevera Además de ser consecuencia del pluralismo político-social que se manifiesta
en la ley del Parlamento, los ordenamientos actuales también son el resultado de una
multiplicidad de fuentes que es, a su vez, expresión de una pluralidad de
ordenamientos “menores” que viven a la sombra del estatal y que no siempre aceptan
pacíficamente una posición de segundo plano. A este respecto, se ha hablado de
“gobiernos particulares” o “gobiernos privados” que constituyen ordenamientos
jurídicos sectoriales o territoriales. De tales ordenamientos, algunos pueden
considerarse enemigos del estatal y ser combatidos por ellos, pero otros pueden ser
aceptados para cuncurrir con las normas estatales en la formación de un ordenamiento
de composición plural. De este modo, la estabilidad del derecho, que era una premisa
esencial del positivismo jurídico del siglo pasado, es puesta en tela de juicio y la
ley se retrae con frecuencia para dejar sectores enteros a regulaciones de origen
diversos, provenientes bien de sujetos públicos locales, en conformidad con la
descentralización política y jurídica que marca de forma característica la
estructura de los Estados actuales, bien la autonomía de sujetos sociales
colectivos, como los sindicatos de trabajadores, las asociaciones de empresarios y
las asociaciones profesionales.
Aqui, vê-se travada uma verdadeira batalha. Essa luta, no plano interno, tende a
propiciar a consolidação do Estado Democrático de Direito, por meio de uma adequada
relação entre governo e jurisdição, que redunda para além da submissão do exercício
da soberania aos limites normativos, alcançando a admissão, o controle e a gestão
dos novos atores cuja atuação se volte para imprimir uma maior legitimação do poder
do Estado, de tal sorte que o arranjo democrático se apresente mais eficaz e
eficiente no caminho da efetivação dos direitos humanos e/ou fundamentais, não
resultando, apenas, em num arranjo formal (TOMAZ;
MATA DIZ; CALDAS, 2019). O ajuste daí resultante permite uma reorientação
conceitual para a liberdade bem desvelada por Maia
(2011, p. 38) quando registra que
A democracia é o ajuste político proposto quando a igualdade de condições
material está inexoravelmente perdida pelo reconhecimento da naturalidade
(no sentido contratualista) com que desenvolvemos a ideia e o sentimento de
apropriação individual. E a liberdade, revisitada, deve se manifestar como
uma igualdade de oportunidades, que devem ser livremente assumidas por cada
um, ou seja, a liberdade ética.
Assim, desde que a norma (constitucional) resulte de um conserto novo por meio de
revelar a vontade da maioria dos a ela concernidos, avultar-se-á, desde aí,
soberana, de tal sorte que esse círculo garantiria a legitimidade e resolveria uma
possível antinomia entre a soberania e a sua limitação jurídica. Ferrajoli (2002, p. 40) reproduz essa visão ao
fazer ver que
Essa antinomia, como já se viu, resolveu-se no plano do direito interno com o
nascimento do estado constitucional de direito, em virtude do qual o direito
regula a si próprio, impondo à sua produção vínculos não mais apenas
formais, ou seja, relativos às suas formas, mas também substanciais, ou
seja, relativos aos seus conteúdos, e assim condicionando não mais apenas o
vigor das normas produzidas, mediante normas sobre os procedimentos, mas
também sua validade substancial, mediante normas sobre os direitos
fundamentais. No estado de direito, portanto, não existe nenhum soberano, a
menos que não se entenda como “soberana”, como puro artifício retórico, a
própria constituição, ou melhor, o sistema de limites e de vínculos
jurídicos por ela impostos aos poderes públicos já não mais soberanos.
De fato, a configuração do Estado Democrático de Direito afasta a ideia de poderes
soberanos pela própria autolimitação que o Direito, a ele próprio, impõe. Caso
queira, soberana seria a Constituição, considerada dinâmica, enquanto um processo
ideológico-cultural que prestigie e fomente sua programação política nas estruturas
sociais que visa a reger de forma preponderante, criando um engajamento intenso dos
a elas concernidos, com a abertura de canais para sua participação e cooperação
(GUERRA FILHO, 1997).
Não é por outra razão que, ao analisar as relações entre democracia, direitos
humanos/fundamentais e Estado constitucional, Pagliarini (2006, p. 22) registra que a Constituição “veio ao mundo para
cumprir dois papéis históricos: (i) o de limitar o exercício do Poder, estruturando
a comunidade política chamada Estado; (ii) o de proclamar e garantir direitos
básicos do indivíduo.”
E, dentro dessa composição dos papéis históricos da Constituição, é que avulta a
importância de sua função soberana de acoplamento estrutural e estruturante entre os
distintos subsistemas sociais, segundo uma maior autonomia e responsabilização
destes obtida com auxílio de mecanismos de consenso e participação, sob uma visão
autopoiética do Direito há muito registrada por Caldas (1997, p. 214)
É com atenção às dificuldades havidas para se equacionar as mais variadas
desarticulações sociais (encontrar o equilíbrio entre consenso e conflito),
desarticulações estas impregnadas com marcante conotação política pela
colocação em cena da liberdade individual da autoridade estatal, é que,
inserida na teoria sistêmica, a teoria da autopoiese aparece como uma
estratégia de busca do melhor modo de se controlar e manter a ordem social.
Visa uma maior autonomia com maior responsabilização dos subsistemas do
corpo social, cuja autodisciplina responsável, ou autogestão dos grupos
sociais só se obtém por meio de mecanismo de consenso e de participação
[...].
Dessa forma, posta a tessitura em que se insere a projeção interna e externa da
soberania constitucional em face do novo arranjo cooperativo da ordem estatal, a
qual, por seu turno, se mostra voltada a regrar as vicissitudes verificadas na
contemporânea sociedade do risco e da informação, passa-se à análise da projeção
externa de tal referida soberania constitucional dos Estados, considerados enquanto
centrais e periféricos em uma ordem global concebida à luz de uma
sociedade/comunidade heterárquica (TOMAZ,
2011).
A PROJEÇÃO EXTERNA DA SOBERANIA CONSTITUCIONAL: CENTRO, PERIFERIA E
SOCIEDADE/COMUNIDADE GLOBAL HETERÁRQUICA3
O problema do exercício da soberania em um mundo globalizado, todavia, assume
conotação diferente quando enfrentado em face da sua projeção em âmbito
internacional, uma vez que caracterizado, como antes ressaltado, pela ausência de um
polo nômico supremo, ou, em outras palavras, de uma norma legitimadora que
igualmente imponha ao Estado vínculos formais e materiais, ensejadores de uma óptica
da soberania de forma absoluta e unilateral.
De tal sorte, quando hoje se pretende estabelecer no plano externo um quadro formal e
material, que se revele legitimador e garantidor da atividade estatal (ius
cogens) - o que implicaria e evidenciaria a antinomia entre soberania e
Direito -, a discussão repousa em grande dificuldade e tem permitido assistir-se a
certos retrocessos em nome de interesses nacionais, a exemplo do que ocorrido no
âmbito do Direito da Integração quando não se obteve a unanimidade necessária entre
os Estados europeus para a aprovação de uma Constituição da União Europeia, em um
plano de supranacionalidade comunitária.
Com efeito, não obstante os processos de integração não seguirem uma linearidade
evolutiva e ter-se chegado bem perto da promulgação de uma Constituição europeia
(supranacional), tal circunstância, obviamente, quando transposta do Direito da
Integração para o Direito Internacional Público, apenas se processaria segundo um
acoplamento estrutural integrativo, como ressalta Ferrajoli (2002, p. 46), parodiando Dworkin (2010)4, se se
‘levar a sério’ o direito internacional, e, portanto, assumir seus princípios
como vinculadores e seu projeto normativo como perspectiva alternativa
àquilo que de fato acontece; validá-los como chaves de interpretação e
fontes de crítica e deslegitimação do existente; enfim, planejar as formas
institucionais, as garantias jurídicas e as estratégicas políticas para
realizá-los.
Enquanto isso não se efetiva, multiplicam-se as violações aos direitos
humanos/fundamentais, à paz e à segurança, e outro caminho não se avulta além de se
divisar e operar a soberania sob outro paradigma global, qual seja, o da soberania
constitucional cooperativa, a qual envolve a concepção do chamado constitucionalismo
cooperativo de Häberle (2007), inclusive à
luz da concepção de global governance, alinhada à acepção lata de
multitude desenvolvida por Hardt e Negri (2000).
De tal maneira, tem-se uma programação, uma diretriz de planejamento para se
minimizarem os efeitos excludentes da globalização e se acompanhar o que acontece, o
que existe: o desenvolvimento de núcleos de poder (não apenas estatal) hegemônicos e
voltados para a atuação em rede de modo a infundir, difundir e perpetrar uma
regulação global apta a influenciar e moldar condutas sociais, inclusive em âmbito
interno, que sejam capazes de combater as mais atrozes violações ao princípio da
dignidade humana, segundo um modelo de desenvolvimento sustentável mundialmente
aceito, a exemplo do que hoje se verifica na Agenda 2030 (ONU, 2015) e no Pacto
Global (ONU, 2019), instrumentos que podem ser considerados como pedras de toque, em
conjunto com outras do gênero, do “direito comum de cooperação” häberlesiano (HÄBERLE, 2007).
É esse contexto, aliás, que revela o ambiente de mudanças em que o Estado nacional
está atuando neste novo milênio da transnacionalidade. Assim, Hobsbawm aponta de
forma precisa as profundas modificações que começaram a eclodir a partir do segundo
pós-guerra
Quando a economia transnacional estabeleceu seu domínio sobre o mundo,
solapou uma grande instituição, até 1945 praticamente universal: o
Estado-nação territorial, pois um Estado assim já não poderia controlar mais
que uma parte cada vez menor de seus assuntos. Organizações cujo campo de
ação era efetivamente limitado pelas fronteiras de seu território, como
sindicatos, parlamentos e sistemas públicos de rádio e televisão nacionais,
saíram portanto perdendo, enquanto organizações não limitadas desse jeito,
como empresas transnacionais, o mercado de moeda internacional e os meios de
comunicação da era do satélite, saíram ganhando. O desaparecimento das
superpotências, que poderiam de qualquer modo controlar os
Estados-satélites, iria reforçar essa tendência. Mesmo a mais insubstituível
função que os Estados-nações haviam desenvolvido durante o século, a de
redistribuir sua renda entre suas populações através das “transferências
sociais” dos serviços de previdência, educação e saúde, e outras alocações
de fundos, não mais podia ser territorialmente auto-suficiente em teoria,
embora a maior parte tivesse de continuar sendo na prática, a não ser onde
entidades supranacionais como a Comunidade ou União Europeias a
complementasse em alguns aspectos. Durante o auge dos teólogos do livre
mercado, o Estado foi solapado mais ainda pela tendência de desmontar
atividades até então exercidas, em princípio, por órgãos públicos
deixando-as entregues ao “mercado” (HOBSBAWM, 1997, p. 413-414).
Esse cenário impõe uma agenda programática de políticas públicas nacionais, regionais
e globais, em um contexto de promoção de desenvolvimento sustentável, na qual o
Estado aparece tomando ciência de que não mais detém o monopólio do Direito, ante a
atuação heterárquica de antigos e novos atores (TOMAZ; LAGES, 2015) em um ambiente muito mais complexo e denso: uma
autêntica rede, que constituiria a constelação pós-nacional desvelada por Habermas
na antropocena (CRUTZEN; STOERMER, 2000)
sociedade do risco e da informação
Assim como no século XIX o trem, o barco a vapor e o telégrafo intensificaram
o trânsito de bens e das pessoas bem como a troca de informações, assim hoje
em dia a tecnologia dos satélites, a navegação aérea e a comunicação digital
criam novamente redes mais amplas e densas. “Rede” [Netzwerk] tornou-se uma
palavra-chave, e tanto faz se se trata das vias de transporte para bens e
pessoas, de correntes de mercadorias, capital e dinheiro, de transmissão e
processamento eletrônicos de informações ou de circulações de pessoas,
técnicas e natureza. Cadeias temporais comprovam as tendências globalizantes
em muitas dimensões. O termo encontra igualmente aplicação na expansão
intercontinental da telecomunicação, do turismo de massa ou da cultura de
massa, bem como nos riscos transnacionais da técnica de ponta e do comércio
de armas, nos efeitos colaterais mundiais do ecossistema explorado ou no
trabalho conjunto internacional de organizações governamentais e não
governamentais (HABERMAS, 2001, p.
84).
A inter-relação, desse modo, entre a governança regulatória participativa5 e o exercício cooperativo da soberania
constitucional em combate às violações aos direitos humanos e/ou fundamentais, e sua
respectiva aplicação pelos sistemas globais, regionais e nacionais para promoção de
um desenvolvimento sustentável legitimado pelos Estados e pelas suas sociedades,
como visto, é determinada segundo um planejamento calcado não apenas em mecanismos
institucionais e participativos em uma concepção bottom up (CALDAS, 2016; CALDAS; FREITAS, 2018), mas
também a partir de pressupostos normativos exsurgidos do setor privado (como
expressão de autorregulação social), e que, posteriormente, imbricam-se na forma de
regulação do setor público, o qual os acaba institucionalizando, positivando e,
assim, atribuindo-lhes cogência e não apenas legitimidade social (CALDAS; MARTINS,
2016).
Estabelece-se, com isso, um espectro de interconexão direta que acaba por fixar-se
mediante medidas e atos normativos adotados pelos Estados e organizações
internacionais, consequentemente, com uma influência persuasiva imbricada,
sobreposta e direta na implementação e execução das atividades privadas de forma
geral, mediante atos regulatórios de natureza obrigatória ou declaratória
(soft law), enquanto expressão de uma regulamentação híbrida,
nos dizeres de Hoffmann-Riem (2019), em um processo social reflexivo, dialético de
globalização do local e localização do global, consoante os ensinamentos de Lourenço (2014), os quais revelam a
interpenetração do Constitucionalismo cooperativo apontada por Häberle (2007).
Todavia, como acima já mencionado, a globalização tem imprimido uma legitimação do
poder por intermédio de uma identidade imposta, padronizada e não diferenciada como
aponta Castells (2001) e, na mesma direção,
Andreucci (2019) e Andreucci e Nohara
(2011).
Com efeito, Andreucci, inicialmente em conjunto com
Nohara (2011), e, posteriormente, em trabalho isolado (2019), desenvolve
o conceito de protoglobalização, consistente na construção de novos vínculos
identitários em prol de uma comunidade global (e não mais sociedade - HÄBERLE, 2007), a partir da ideia de
protonacionalismo de Hobsbawm (1990), para
explicar os malefícios desse fenômeno uniformizador e excludente das diversidades
que se mostrem incompatíveis com as tendências próprias do processo de
globalização.
Por isso, ajustar os ditos Estados periféricos (HABERMAS, 2001; TEUBNER, 2003) à
globalização tem implicado uma situação de exclusão, em que os direitos
humanos/fundamentais e o princípio da dignidade humana têm sido postos de lado em
face da sobrepujança de um unilateralismo massificante, a encerrar uma maldade
líquida, nos dizeres de Bauman e Donskis
(2019), a qual tem levado, v. g., à
concorrência de produtos advindos dos Estados centrais, em detrimento de pequenas e
médias empresas nacionais periféricas, bem como às privatizações, entregando-se, sem
controle, o poder e a riqueza de empresas estatais a transnacionais, em prejuízo das
relações de consumo e dos direitos sociais (especialmente os dos trabalhadores),
reduzindo-se salários e amesquinhando-se aposentadorias.
Esse quadro demonstra o nível de desigualdade entre os Estados centrais e os Estados
periféricos, bem como das suas respectivas camadas sociais, ao evidenciar uma enorme
diferenciação entre incluídos e excluídos que, por
mais paradoxal que seja, embora incompatível tanto com a democratização interna (do
Estado Democrático de Direito), quanto com a (des)ordem internacional globalizada,
ao mesmo tempo, acaba por alavancar tal mencionada desigualdade.
É por isso que se torna pertinente entender-se como ocorre tal diferenciação entre
Estados-núcleos e Estados periféricos, de sorte a verificar-se como é que acaba
sendo fomentada a desigualdade ao se ter a inclusão destes na rede sistêmica da
globalização e, em consequência, sua marginalização, a qual é explicada pelo fato de
não alcançarem os padrões globalizados exigidos (políticos, jurídicos, tecnológicos
etc) ao, de forma repentina, veem-se obrigados a se inserir nesta nova ordem sem
que, em muitos casos, tenham conseguido, ainda, ultrapassar as providências
necessárias para a preservação dos direitos humanos/fundamentais em seu território,
sequer alinhando-se integralmente com os ditames da etapa evolutiva de um Estado de
Bem-Estar-Social (Estado de Previdência) e, assim, deflagrando o fenômeno da chamada
modernidade tardia ou um simulacro de
modernidade, na expressão de Vieira
(1995) bem mencionada por Streck
(2004).
Dessa forma, na atualidade do processo de globalização, os Estados-núcleos, cujas
principais características se mostram bem arroladas por Barnett (1994), são centros de irradiação de decisões
econômico-financeiras, políticas, científico-tecnológicas e culturais, ao passo que
os Estados periféricos limitam-se a orbitar impulsionados por essas demandas em
torno do centro, de cuja força gravitacional não conseguem escapar, reproduzindo, em
certa medida, as tradicionais polarizações existentes no debate estatal, político e
desenvolvimentista internacional, tais sejam, Norte-Sul, Oriente-Ocidente,
Ricos-Pobres, Centro-Periferia, que se supunham ultrapassadas no cenário
mundial6.
E isso decorre, sem dúvida, da circunstância de que a globalização, por si só, não
tem conduzido a um processo de inclusão, ou melhor, a um processo homogêneo em razão
da modernidade tardia - ou mesmo simulacro de modernidade, conforme Vieira (1995) - a que os Estados periféricos
(antes acoimados de subdesenvolvidos), como o Brasil, ainda se encontram vinculados
ante o enfraquecimento da Constituição enquanto fator de generalização congruente de
expectativas normativas (CALDAS, 1997).
A distinção da realidade desses Estados em relação aos centrais, em que suas
desigualdades sociais não foram ainda superadas ou equalizadas dentro do modelo
tradicional de exercício da soberania, quer por falta de recursos financeiros, quer
por falta de vontade política (vontade de constituição - HESSE, 1983), por si só, implica manifesta disparidade de
interesses e, assim, uma posição diferenciada que exige um planejamento estratégico
e uma maneira mais adequada de exercício da soberania constitucional para se
contornar tais efeitos maléficos globalizantes, aproveitando-se, ao máximo, dos
efeitos positivos do processo para um, assim, otimizado desenvolvimento sustentável,
porquanto, como há muito esclarecido por Vilanova
(1977, p. 24)
A racionalização do processo de desenvolvimento confere a globalização:
desenvolvimentos só setoriais desarticulam a composição do conjunto. Requer
a politização: só um agente, como o poder, dispõe de substância econômica,
financeira, decisão sobre o todo do desenvolvimento, duração e fins que
ultrapassam a duração e os fins de indivíduos e, até, de gerações; somente o
poder político capacita-se para a programação dessa mudança que, pelo
compasso e velocidade, é singela fórmula do progresso dentro da ordem, do
Estado liberal democrático. Requer planejamento. Tudo isso, necessita mais
Estado e exigindo mais estado, exige mais direito. O desenvolvimento
programado apóia-se nas ciências naturais e nas ciências sociais. As
ciências, instrumentalmente utilizadas, dão margem às tecnologias. Diríamos,
em síntese, que essa transformação rápida da sociedade global apóia-se na
política, no direito e na tecnologia.
E é o planejamento estratégico, consubstanciado nas políticas públicas advindas da
Carta política de cada Estado (Constituição), que traz sua identidade cultural neste
mundo globalizado (HÄBERLE, 2007; VERDÚ, 1998), ou seja, empresta a
protoglobalização (ANDREUCCI, 2019; ANDREUCCI;
NOHARA, 2011) necessária a si e sua sociedade para não apenas sobreviverem orbitando
em torno de interesses hegemônicos econômicos e políticos globais, mas também
estarem capacitados, em uma cooperativa parceria entre sociedade e Estado, como
igualmente entre Estados com interesses afins, a descobrirem os caminhos até seus
interesses, os quais, sob a óptica do Constitucionalismo de resultado, apenas
objetivam-se pela concreção dos direitos humanos/fundamentais (MOREIRA NETO, 2009).
Tais novos vínculos estatais identitários considerados a partir do sistema jurídico
nesse processo do surgimento da atual comunidade global (protoglobalização) -
considerados por Teubner (1989) como
“identidades múltiplas” deste sistema -, modelados pelos interesses, pelos objetivos
e pelas prioridades sociais, há que se ressaltar, somente terão sua construção
exitosa se for adotado um planejamento estratégico por parte dos Estados, segundo um
arquétipo de exercício da soberania que seja constitucional e cooperativo, adaptado
a esta realidade globalizada em que o contraste entre uma modernidade central e uma
modernidade periférica, demonstrando o embate de civilizações aos moldes previstos
por Huntington (1996), bem como a falta de
autonomia das esferas de juridicidade, sobretudo a estatal em definir os conteúdos e
os processos de criação e aplicação normativas7, possam ser superados de maneira a valorar a igualdade e a dignidade
humana como condições para o desenvolvimento sustentável considerado democrático e
de Direito.
Para tanto, à luz das lições de Neves (2006,
p. 261) expondo o posicionamento teubneriano, tem-se que a “Teoria do Direito é
desafiada [...] a incluir em sua semântica e trazer para o centro de suas discussões
a questão das ordens jurídicas globais e plurais, estruturalmente acopladas aos
respectivos subsistemas da sociedade mundial.” No mesmo diapasão, Luhmann (2002, p. 660) assevera que “no hay
nada en el plano de la sociedad del mundo que corresponda al acoplamiento
estructural del sistema político y del sistema jurídico por la vía de las
Constituciones.”
E essa ausência de uma maior projeção externa da soberania constitucional dos
Estados, no âmago da hodierna comunidade global, para que se observe apta a um
efetivo acoplamento estrutural e estruturante entre os sistemas político e jurídico
internacionais (malgrado tal acoplamento já tenha sido projetado para o processo de
integração econômica da União Europeia em 2004, enquanto uma Constituição
supranacional que acabou sendo rejeitada em 2007 pelos plebiscitos na França e na
Holanda), decorre, primeiro, da circunstância de que a ordem mundial globalizada tem
como código hipertrófico o ter/não-ter da Economia e, segundo,
porque, como lembra com precisão Teubner
(2003, p. 13),
Não só a economia é hoje em dia um sistema autônomo no plano global - também
a ciência, a cultura, a técnica de saúde, a previdência social, o
transporte, o sistema militar, a mídia e o turismo auto- reproduzem-se
atualmente como ‘sistemas mundiais’ no sentido de Wallerstein e fazem, dessa
maneira, concorrência à política internacional dos Estados nacionais, com
sucesso. Mais ainda: enquanto a política apenas atingiu, na forma das
“relações inter- nacionais”, um estado de “proto-globalidade” - quer dizer,
não muito mais do que relações intersistêmicas entre unidades nacionais com
elementos transnacionais relativamente fracos -, outros subsistemas sociais
já começaram a formar uma autêntica sociedade mundial, ou melhor, uma
quantidade fragmentada de sistemas mundiais distintos.8
É por isso que Bolzan de Morais (2011, p. 95)
afirma a importância da Constituição
para o reconhecimento e desenvolvimento do direito humanitário, mesmo sem que
saibamos exatamente e com certeza sobre qual o espaço geográfico incidirá o
regramento constitucional - o nacional, o local, o regional, o mundial(?) -
ou quais mecanismos que são necessários constituir para torná-lo apto a
produzir os efeitos pretendidos...
Assim, preleciona que o “seu papel (da constituição) não está terminado, mesmo que
esteja passando por uma reformulação profunda, produto de uma realidade nova que
impõe seja ordenada levando-se em consideração o seu cunho aberto e universalizado.”
(BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 94).
A emergência de centros heterárquicos, ou seja, centros de poder produtores de normas
que concorrem com o Direito produzido pelo Estado nacional, que caracteriza o
fenômeno globalizante, às escâncaras, expõe a crise de unidade, e mesmo de
autonomia, dos sistemas que se inserem tanto no ambiente normativo interno, quanto
na ordem internacional, havidos, todos eles, além e sobretudo, da Política, da
Economia e do próprio Direito.
Divisa-se, portanto, na ordem internacional globalizada, uma policontextualidade
alavancada a partir de operações transjuncionais (NEVES, 2006), o que, a bem da verdade, assegura a sua existência a par
de não constituir um sistema social diferenciado. Por isso, prossegue Neves
propugnando, enfim, pela compatibilidade da concorrência entre o sistema jurídico do
Estado Democrático de Direito e o pluralismo jurídico da sociedade mundial afirmando
que
Deve-se observar que a polivalência das operações transjuncionais pressupõe a
bivalência dos códigos dos respectivos sistemas. Mediante essas operações é
possível “passar de uma contextura (uma distinção ‘positivo/negativo’) para
uma outra e marcar, a cada vez, quais as diferenças que se aceitam ou se
rejeitam para determinadas operações”. A policontextualidade implica não
somente que haja operações transjuncionais entre o código “lícito/ilícito”
do sistema jurídico do Estado Democrático de Direito e outros tipos de
códigos sociais binários (“ter/não-ter”, “poder/não-poder”,
“verdadeiro/falso”, “transcendente/imanente, “amor/desamor”, “belo/feio”,
“consideração/desprezo”, etc.), mas também que ocorram operações
polivalentes entre o código “lícito/ilícito” sob o qual o referido sistema
opera e outras manifestações do código binário do direito. Essas, por seu
turno, não se reduzem nem àqueles códigos jurídicos que se afirmam,
respectivamente, em outros sistemas jurídicos estatais segmentariamente
diferenciados, nem ao código binário que se apresenta no direito
internacional público, mas incluem igualmente os códigos binários
específicos das ordens jurídicas globais plurais. Quer dizer: a referência à
unidade não trivial, complexa e múltipla do sistema jurídico do Estado
Democrático de Direito não exclui uma pluralidade de outras ordens jurídicas
que estejam em relações permanentes de concorrência com esse sistema;
portanto, não é, em princípio, incompatível com o pluralismo jurídico da
sociedade mundial (NEVES, 2006, p.
265).
Na escolha de conteúdos e procedimentos, que tradicionalmente marcou a autonomia
normativista do Estado nacional, a função bivalente do código binário do Direito se
intensifica em defesa de sua unidade na medida em que ela mediatiza, tanto
internamente, como na sociedade/comunidade global, a marcação dos referidos
conteúdos e procedimentos pelo filtro do outro código
inclusão/exclusão, de modo a privilegiar aqueles (conteúdos e
procedimentos) que satisfaçam a igualdade e o princípio da dignidade humana a fim de
que os direitos humanos/fundamentais possam aparecer na policontextualidade como
limite da capacidade de aprendizagem e condição de possibilidade das comunicações
deflagradas no plano interno ou daquelas objeto das operações transjuncionais,
claramente maximizadas pelos avanços tecnológicos que marcam a dita sociedade da
informação dromocrática (VIRILIO, 1996).
Quando a função binária inclusão/exclusão mediatiza o irrompimento
de operações por todos os sistemas, ela está guindada ao status de
um meta-código (LUHMANN, 2002), decorrendo,
desde aí, a importância da Constituição como locus de
fundamentabilidade dos direitos humanos (e de outras naturezas, como os civis, os
sociais, os assistenciais etc.), permitindo a exata mediação de sua defesa, seja no
plano interno, por meio de acoplamentos estruturais e estruturantes entre os
sistemas, seja apontando o norte para as operações inter-sistêmicas no âmbito da
transjuncionalidade heterárquica, na ordem global (NEVES, 2006).
CONCLUSÃO
Realmente, apesar de toda a “constitucionalização do Direito Internacional”, como se
assiste no processo de integração e unificação da Europa, e de toda
“internacionalização do Direito Constitucional”, com a abertura das Constituições
para acolher normas de Direito Internacional, como princípios e tratados, ainda se
divisa no Direito nacional o ponto de partida para a existência e a produção do
sistema internacional, em projeção de uma soberania constitucional cooperativa,
inclusive à luz da concepção de global governance alinhada à
acepção lata de multitude, rumo a um Direito geral de cooperação
häberlesiano entre Estados (e entre estes e suas sociedades) no seio de uma
comunidade global comprometida com a realização dos direitos
humanos/fundamentais.
É inegável que o processamento dromocrático de comunicações intersistêmicas na
comunidade global, cujo resultado é a criação de novos polos heterárquicos,
policêntricos, multilaterais e, assim, multifacetados
(multi-stakeholderism), tem-se erigido em detrimento do
tradicional desempenho da função sistêmica da Constituição de acoplamento estrutural
e estruturante entre Direito (lícito/ilícito), Economia
(ter/não-ter) e Política (poder/não-poder), de
modo a impedir uma salutar inter-referência entre si e, assim, ter-se um canal
cooperativo de equalização dos interesses recíprocos no concerto democrático
tradicional, forçando um novo arranjo por parte dos Estados, segundo uma visão
dinâmica da Constituição enquanto um processo ideológico-cultural.
A seu turno, as relações entre os polos heterárquicos desenvolvem-se por meio de
operações transjuncionais que prejudicam a concreção dos direitos humanos e/ou
fundamentais, tal qual acontece na ordem constitucional dos Estados à luz da
concepção tradicional de exercício da sua soberania estatal, em claro detrimento de
uma maior inclusão social, o qual somente pode ser contornado mediante uma dinâmica
ideológico-processual constitucional, a prestigiar e fomentar sua programação
política nas estruturas sociais que visa a reger de forma preponderante, criando um
engajamento intenso dos a elas concernidos em um processo com a abertura de canais
para sua participação e cooperação.
Os novos vínculos estatais identitários considerados a partir do sistema jurídico ao
longo do processo de globalização (protoglobalização), a sua vez, somente terão
êxito para uma efetiva inclusão social, mediante um planejamento estratégico, por
parte dos Estados, que leve em consideração, de um lado, uma governança resiliente
concertada (global e regulatória) que se mostre adaptativa/transformadora das
estruturas organizacionais e procedimentais dos distintos atores, afastando aqueles
considerados nocivos em um processo dialógico definidor dos conteúdos e dos
procedimentos a serem discutidos, e, de outro, o exercício da soberania
constitucional devidamente conformado para um Direito global, sob uma nova forma de
multilateralismo, ou seja, complementado por um
multi-stakeholderism heterárquico e cooperativo para ampla
efetivação dos direitos humanos/fundamentais.
NOTA
Declaramos que o artigo intitulado “EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E
DEMOCRACIA: A SOBERANIA CONSTITUCIONAL COOPERATIVA ENTRE A ORDEM ESTATAL E A
ORDEM INTERNACIONAL NA SOCIEDADE DO RISCO E DA INFORMAÇÃO”, submetido à Revista
Opinião Jurídica, representa fruto direto das pesquisas desenvolvidas pelos
autores, sobretudo no âmbito das atividades da Rede de Pesquisa “Integração,
Estado e Governança”, tendo ambos (membros permanentes da referida Rede)
realizado, concomitantemente, as tarefas de seu planejamento, execução e revisão
da seguinte forma: 1) Roberto Correia da Silva Gomes Caldas: desenvolveu de
forma mais específica a parte relativa à soberania constitucional cooperativa e
à efetividade dos direitos humanos/fundamentais na sociedade do risco e da
informação; e 2) Carlos Alberto Simões de Tomaz: desenvolveu de forma mais
específica a parte relativa à projeção da soberania na sociedade heterárquica,
em âmbito interno e internacional.
As ideias contidas nesse tópico se verificam anteriormente tratadas, de forma
isolada, em Tomaz (2011) e Tomaz (2016), e, conjuntamente, em Tomaz e Lages
(2015), sendo ora desenvolvidas e, assim, apresentadas com acréscimos, revisões
e modificações.
A Escola de Viena apontava para a circunstância de que é pressuposto de uma
posição monista, com primazia do Direito estatal sobre o Direito Internacional
(monismo nacionalista), a soberania absoluta do Estado. Daí porque, afastando o
monismo nacionalista e adotando o monismo internacionalista, Kelsen, não
obstante divisasse a soberania como qualidade de uma ordem normativa, já abria
espaço para uma concepção aberta quando afastava o solipsismo de Estado, o que
pressupõe, obviamente, inter-referência, todavia, tomada apenas no campo da
normatividade do Direito Internacional (KELSEN, 1992).
As ideias contidas nesse tópico se verificam anteriormente tratadas, de forma
isolada, em Tomaz (2011) e Tomaz (2016), conjuntamente, em Tomaz e Lages (2015),
sendo ora desenvolvidas e, assim, apresentadas com acréscimos, revisões e
modificações.
Trata-se de uma referência ao título do livro Taking rights seriously - na
tradução brasileira, Levando os direitos a sério.
Sobre a diferença entre governança regulatória e governança corporativa, vide
Caldas e Martins (2016) e Mata Diz e Caldas (2016).
Há que registrar em tal cenário mundial, outrossim, a paradoxal tendência de
“periferização do centro” comentada por Tomaz (2016), mas que, em razão do corte
metodológico deste estudo, não será objeto de análise.
A visão pragmático-sistêmica de Luhmann (2002), com os desdobramentos teoréticos
de Neves (2006) e Teubner (2003), bem explica essa crise quando mostra a
hipertrofia do código (ter/não ter) da Economia sobre os códigos binários de
atuação dos sistemas jurídico (lícito/ilícito) e político (poder/não- poder ou
governo/oposição).
É preciso, todavia, não se olvidar, como aqui já ressaltado a partir do
pensamento de Bolzan de Morais (2011), Castells (2002) e Zagrebelsky (2011), da
existência também de núcleos heterárquicos nocivos e com atuação igualmente
voltada para concorrer com o poder estatal, como, por exemplo, redes criminosas
internacionais para tráfico de entorpecentes, órgãos, crianças, mulheres, armas,
capital ilícito, bem como corrupção e cooptação de agências regulatórias em prol
de interesses particulares e ilícitos.
REFERÊNCIASANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O grito: globalização,
retrocesso ou… diálogos possíveis acerca da integração, da sustentabilidade e da
democracia. In: MATA DIZ, Jamile Bergamaschine; CALDAS, Roberto
Correia da Silva Gomes; BRAGA, Sérgio Pereira (org.). Globalização,
desenvolvimento sustentável e efetividade da justiça. Belo Horizonte: Arraes
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